Index   Back Top Print

[ AR  - DE  - EN  - ES  - FR  - IT  - PL  - PT ]

DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
 À CÚRIA ROMANA
NA APRESENTAÇÃO DE VOTOS NATALÍCIOS

Sala Clementina
Sábado, 21 de dezembro de 2019

[Multimídia]


 

«E o Verbo fez-Se homem e veio habitar connosco» (Jo 1, 14).

Queridos irmãos e irmãs!

Para todos vós, as minhas cordiais boas-vindas. Agradeço ao Cardeal Ângelo Sodano as palavras que me dirigiu e sobretudo quero, em nome pessoal e também dos membros do Colégio Cardinalício, manifestar-lhe viva gratidão pelo serviço precioso e diligente que desempenhou durante muitos anos como Decano com disponibilidade, dedicação, eficiência e grande capacidade organizativa e coordenadora; com aquele modo de agir da nossa gente, da rassa nostrana, como diria [o escritor piemontês] Nino Costa. De coração obrigado, Eminência! Agora cabe aos Cardeais Bispos eleger um novo Decano; espero que escolham alguém que se ocupe a tempo inteiro deste cargo tão importante. Obrigado.

A vós que aqui estais, aos vossos colaboradores, a todas as pessoas que prestam serviço na Cúria, bem como aos Representantes Pontifícios e a quantos os apoiam, desejo um santo e feliz Natal. E aos votos natalícios junto o reconhecimento pela dedicação diária colocada ao serviço da Igreja. Muito obrigado!

O Senhor oferece-nos a oportunidade de nos encontrarmos, também este ano, para este momento de comunhão que reforça a nossa fraternidade e está enraizado na contemplação do amor de Deus que Se nos revela no Natal. De facto, «o nascimento de Cristo – escreveu um místico do nosso tempo – é o testemunho mais forte e eloquente de quanto Deus amou o homem. Amou-o com um amor pessoal. É por isso que tomou um corpo humano, ao qual Se uniu e assumiu para sempre. O nascimento de Cristo é, em si mesmo, uma “aliança de amor” estipulada para sempre entre Deus e o homem».[1] E São Clemente de Alexandria escreve: «Para isto Ele [Cristo] desceu; para isto Se revestiu de humanidade; para isto sofreu voluntariamente o que padecem os homens, para que, depois de Se ter confrontado com a nossa fraqueza que amou, pudesse em troca confrontar-nos com a sua força».[2]

À vista de tanta benevolência e tanto amor, a troca das «Boas-Festas» natalícias é igualmente ocasião para acolhermos de modo novo o seu mandamento: «Que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 34-35). Aqui, Jesus não nos pede para O amarmos a Ele em resposta ao seu amor por nós; mas, sim, para nos amarmos uns aos outros com o seu próprio amor. Por outras palavras, pede-nos para sermos semelhantes a Ele, porque Ele Se fez semelhante a nós. Oxalá o Natal «nos encontre – exorta o Santo cardeal Newman – cada vez mais semelhantes Àquele que, neste tempo, Se tornou menino por nosso amor; que em cada novo Natal nos encontre mais simples, mais humildes, mais santos, mais caridosos, mais resignados, mais alegres, mais repletos de Deus».[3] E acrescenta: «Este é o tempo da inocência, da pureza, da mansidão, da alegria, da paz».[4]

Pensando em Newman, vem-nos à mente outra afirmação dele bem conhecida – quase um aforismo –, presente na sua obra O desenvolvimento da doutrina cristã, que histórica e espiritualmente se situa na encruzilhada da sua entrada na Igreja Católica. Ei-la: «Aqui, na terra, viver é mudar; e a perfeição é o resultado de muitas transformações».[5] Obviamente, não se trata de procurar a mudança por si mesma nem de seguir as modas, mas de ter a convicção de que o desenvolvimento e o crescimento são a caraterística da vida terrena e humana, enquanto no centro de tudo, segundo a perspetiva do crente, está a estabilidade de Deus.[6]

Para Newman, a mudança era conversão, isto é, uma transformação interior.[7] Na realidade, a vida cristã é um caminho, uma peregrinação. A história bíblica é, toda ela, um caminho, marcado por começos e recomeços; como sucedeu com Abraão; como sucedeu com quantos na Galileia, dois mil anos atrás, se puseram a caminho para seguir Jesus: «E, depois de terem reconduzido os barcos para terra, deixaram tudo e seguiram Jesus» (Lc 5, 11). Desde então, a história do povo de Deus – a história da Igreja – está sempre marcada por partidas, deslocações, mudanças. Obviamente trata-se, não tanto de um caminho puramente geográfico, como sobretudo simbólico: é um convite a descobrir o movimento do coração que, paradoxalmente, tem necessidade de partir para poder permanecer, de mudar para poder ser fiel.[8]

Tudo isto se reveste duma valência particular no nosso tempo, porque estamos a viver, não simplesmente uma época de mudanças, mas uma mudança de época. Encontramo-nos, portanto, num daqueles momentos em que as mudanças já não são lineares, mas epocais; constituem opções que transformam rapidamente o modo de viver, de se relacionar, de comunicar e elaborar o pensamento, de comunicar entre as gerações humanas e de compreender e viver a fé e a ciência. Muitas vezes acontece viver a mudança limitando-se a envergar um vestido novo e, depois, permanecer como se era antes. Lembro-me da expressão enigmática que se lê num famoso romance italiano: «Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude» (Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi de Lampedusa).

A atitude sadia é, antes, deixar-se questionar pelos desafios do tempo presente, individuando-os com as virtudes do discernimento, da parresia e da hypomoné. Então a mudança assumiria um aspeto completamente diferente: de elemento complementar, de contexto ou de pretexto, de paisagem exterior, tornar-se-ia cada vez mais humana e também mais cristã. Continuaria a ser uma mudança externa, mas realizada a partir do próprio centro do homem, isto é, uma conversão antropológica.[9]

Devemos iniciar processos e não ocupar espaços: «Deus manifesta-Se numa revelação histórica, no tempo. O tempo começa os processos, o espaço cristaliza-os. Deus encontra-Se no tempo, nos processos em curso. Não se deve privilegiar os espaços de poder relativamente aos tempos, mesmo longos, dos processos. Devemos preocupar-nos mais com iniciar processos do que com ocupar espaços. Deus manifesta-Se no tempo e está presente nos processos da história. Isto leva a privilegiar as ações que geram novas dinâmicas. E requer paciência, saber esperar».[10] A partir disto, somos solicitados a ler os sinais dos tempos com os olhos da fé, para que a orientação desta mudança «desperte novas e velhas questões com que é justo e necessário confrontar-se».[11]

Hoje, abordando o tema da mudança que se baseia principalmente na fidelidade ao depositum fidei e à Tradição, desejo voltar à implementação da reforma da Cúria Romana, reiterando que esta reforma nunca teve a presunção de proceder como se nada tivesse existido antes; pelo contrário, procurou-se valorizar quanto de bom se fez na complexa história da Cúria. É forçoso valorizar a sua história para construir um futuro que tenha bases sólidas, que tenha raízes e assim possa ser fecundo. Fazer apelo à memória não significa ancorar-se na autoconservação, mas recordar a vida e a vitalidade dum percurso em desenvolvimento contínuo. A memória não é estática, mas dinâmica. Por sua natureza, implica movimento. E a tradição não é estática, mas dinâmica, como dizia aquele grande homem [G. Mahler, retomando uma metáfora de Jean Jaurès]: a tradição é a garantia do futuro e não a custódia das cinzas.

Queridos irmãos e irmãs!

Nos anteriores encontros de Natal, falei-vos dos critérios que inspiraram este trabalho de reforma. Dei também a razão de ser de algumas implementações já realizadas, quer definitivamente quer ad experimentum.[12] Em 2017, destaquei algumas novidades da organização da Cúria, como, por exemplo, a Terceira Secção da Secretaria de Estado, que está a comportar-se muito bem; ou as relações entre a Cúria Romana e as Igrejas particulares, lembrando também a prática antiga das Visitas ad limina Apostolorum; ou a estrutura de alguns Dicastérios, nomeadamente o das Igrejas Orientais e os Dicastérios para o diálogo ecuménico e inter-religioso e, de modo especial, com o Judaísmo.

No encontro de hoje, quero deter-me sobre outros Dicastérios vistos a partir do coração da reforma, ou seja, da primeira e mais importante tarefa da Igreja: a evangelização. São Paulo VI afirmou: «Evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar».[13] Di-lo na Evangelii nuntiandi, que continua a ser, ainda hoje, o documento pastoral mais importante do pós-Concílio, e atual.Na realidade, o objetivo da reforma atual é que «os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autoconservação. A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 27). E assim, inspirando-se precisamente neste magistério dos Sucessores de Pedro desde o Concílio Vaticano II até hoje, pensou-se em realçar a postura missionária, dando o título de Praedicate evangelium à nova Constituição Apostólica, em fase de elaboração, sobre a reforma da Cúria Romana.

Nesta linha, pensei deter-me hoje nalguns Dicastérios da Cúria Romana cuja própria denominação já sugere uma explícita referência a tudo isso, ou seja, a Congregação para a Doutrina da Fé, a Congregação para a Evangelização dos Povos; mas penso também no Dicastério para a Comunicação e no Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral.

Na época em que foram instituídas as primeiras duas Congregações citadas, era mais simples distinguir entre duas vertentes bastante claras: duma parte, um mundo cristão e, da outra, um mundo carecido ainda de ser evangelizado. Agora, esta situação já não existe. Efetivamente as populações que ainda não receberam o anúncio do Evangelho não vivem apenas nos Continentes não ocidentais, mas habitam em toda parte, especialmente nas enormes concentrações urbanas, requerendo também elas uma pastoral específica. Nas grandes cidades, precisamos de outros «mapas», outros paradigmas, que nos ajudem a situar novamente os nossos modos de pensar e as nossas atitudes: já não estamos, irmãos e irmãs, na cristandade! Hoje, já não somos os únicos que produzem cultura, nem os primeiros nem os mais ouvidos.[14] Por isso precisamos duma mudança de mentalidade pastoral, o que não significa passar para uma pastoral relativista. Já não estamos num regime de cristandade, porque a fé – especialmente na Europa, mas também em grande parte do Ocidente – já não constitui um pressuposto óbvio da vida habitual; na verdade, muitas vezes é negada, depreciada, marginalizada e ridicularizada. Destacou-o Bento XVI quando, ao proclamar o Ano da Fé (2012), escreveu: «Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes setores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas».[15] E, em 2010, instituíra o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, a fim de «promover uma renovada evangelização nos países onde já ressoou o primeiro anúncio da fé e estão presentes Igrejas de antiga fundação, mas que estão a passar por uma progressiva secularização da sociedade e a viver uma espécie de “eclipse do sentido de Deus”, que constituem um desafio a encontrar meios adequados para voltar a propor a verdade perene do Evangelho de Cristo».[16] Uma vez ou outra, falei disto com alguns de vós. Penso em cinco países que encheram o mundo de missionários – disse-vos quais são – e hoje não têm os recursos vocacionais necessários para prosseguir. Este é o mundo atual.

A bem da verdade, não foi de forma improvisa que se chegou a esta perceção de que a mudança de época coloca sérios interrogativos quanto à identidade da nossa fé.[17] Neste contexto, há que inserir também a expressão «nova evangelização» adotada por São João Paulo II na Encíclica Redemptoris missio: «A Igreja deve, hoje, enfrentar outros desafios, lançando-se para novas fronteiras, quer na primeira missão ad gentes, quer na nova evangelização dos povos que já receberam o anúncio de Cristo» (n. 30). Há necessidade duma nova evangelização, ou reevangelização (cf. n. 33).

Tudo isso supõe, necessariamente, mudanças e novas focalizações de atenção também nos Dicastérios acima mencionados, bem como em toda a Cúria.[18]

Gostaria de tecer algumas considerações também sobre o recém-criado Dicastério para a Comunicação. A perspetiva que se nos depara é a da mudança de época, pois «largas faixas da humanidade vivem mergulhadas [no ambiente digital] de maneira ordinária e contínua. Já não se trata apenas de “usar” instrumentos de comunicação, mas de viver numa cultura amplamente digitalizada que tem impactos muito profundos na noção de tempo e espaço, na perceção de si mesmo, dos outros e do mundo, na maneira de comunicar, aprender, obter informações, entrar em relação com os outros. Uma abordagem da realidade, que tende a privilegiar a imagem relativamente à escuta e à leitura, influencia o modo de aprender e o desenvolvimento do sentido crítico» (Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit, 86).

Assim, foi confiada ao Dicastério para a Comunicação a tarefa de incorporar numa nova instituição os nove entes que, segundo várias modalidades e com diferentes tarefas, se ocupavam anteriormente de comunicação: o Conselho Pontifício para as Comunicações Sociais, a Sala de Imprensa da Santa Sé, a Tipografia Vaticana, a Livraria Editora Vaticana, o jornal L’Osservatore Romano, a Rádio Vaticana, o Centro Televisivo Vaticano, o Serviço da Internet Vaticana, o Serviço Fotográfico. Entretanto, na linha do que ficou dito, esta unificação não se propunha simplesmente ser um agrupamento de «coordenação», mas harmonizar os diferentes componentes para produzir uma melhor oferta de serviços e ter também uma linha editorial coerente.

A nova cultura, marcada por fatores de convergência e presença multimédia, precisa duma resposta adequada da Sé Apostólica no campo da comunicação. Hoje, em vez de serviços diversificados, prevalece a forma multimédia, e isto marca também o modo de os conceber, configurar e implementar. Tudo isto implica, juntamente com a mudança cultural, uma conversão institucional e pessoal para passar dum trabalho em compartimentos estanques – no melhor dos casos, tinham alguma coordenação – a um trabalho intrinsecamente conexo, em sinergia.

Queridos irmãos e irmãs!

Muitas das coisas ditas até agora valem também, em linha de princípio, para o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Também este foi criado recentemente para dar resposta às mudanças verificadas a nível global, implementando a confluência de quatro Conselhos Pontifícios anteriores: Justiça e Paz, Cor Unum, Pastoral dos Migrantes e Agentes Sanitários. A coerência das tarefas confiadas a este Dicastério aparece sinteticamente lembrada pelo exórdio do Motu proprio Humanam progressionem, que o instituiu: «Em todo o seu ser e obrar, a Igreja está chamada a promover o desenvolvimento integral do homem à luz do Evangelho. Este desenvolvimento tem lugar mediante o cuidado dos bens incomensuráveis da justiça, da paz e da proteção da criação». Concretiza-se no serviço aos mais frágeis e marginalizados, em particular aos migrantes forçados, que representam neste momento um grito no deserto da nossa humanidade. Por isso, a Igreja está chamada a lembrar a todos que não se trata apenas de questões sociais ou migratórias, mas de pessoas humanas, de irmãos e irmãs que hoje são o símbolo de todos os descartados da sociedade globalizada. Está chamada a testemunhar que, para Deus, ninguém é «estrangeiro» nem «excluído». Está chamada a despertar consciências adormecidas na indiferença perante a realidade do Mar Mediterrâneo que se tornou para muitos, demasiados, um cemitério.

Gostaria de chamar a atenção para a importância do caráter integral do desenvolvimento. São Paulo VI afirmou que «o desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento económico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo» (Enc. Populorum progressio, 14). Por outras palavras, a Igreja, enraizada na sua tradição de fé e apelando-se nas últimas décadas ao magistério do Concílio Vaticano II, sempre afirmou a grandeza da vocação de todos os seres humanos, que Deus criou à sua imagem e semelhança a fim de formarem uma única família; e, ao mesmo tempo, procurou abraçar o humano em todas as suas dimensões.

É precisamente esta exigência de integralidade que hoje nos repropõe a humanidade que nos une como filhos de um único Pai. «Em todo o seu ser e obrar, a Igreja está chamada a promover o desenvolvimento integral do homem à luz do Evangelho» (Motu proprio Humanam progressionem (17/VIII/2016), exórdio). O Evangelho não cessa de trazer a Igreja à lógica da encarnação, a Cristo que assumiu a nossa história, a história de cada um de nós. Isto lembra-nos o Natal. Em suma, a humanidade é a chave com que ler a reforma. A humanidade chama, interpela e provoca, isto é, chama a sair para fora e não temer a mudança.

Não esqueçamos que o Menino deitado no presépio tem o rosto dos nossos irmãos e irmãs mais necessitados, dos pobres que «são os privilegiados deste mistério e, muitas vezes, aqueles que melhor conseguem reconhecer a presença de Deus no meio de nós» (Francisco, Carta ap. Admirabile signum, 01/XII/2019, 6).

Queridos irmãos e irmãs!

Trata-se de grandes desafios e de equilíbrios necessários, muitas vezes não fáceis de alcançar pelo simples facto de que, na tensão entre um passado glorioso e um futuro criativo e em movimento, se encontra o presente no qual há pessoas que necessariamente precisam de tempo para amadurecer; há circunstâncias históricas a gerir na vida quotidiana, porque, durante a reforma, o mundo e os acontecimentos não param; há questões jurídicas e institucionais que se hão de resolver gradualmente, sem recurso a fórmulas mágicas nem a atalhos.

Há, finalmente, a dimensão do tempo e existe o erro humano, que não é possível nem correto ignorar, porque fazem parte da história de cada um. Ignorá-los significa fazer as coisas, abstraindo da história dos homens. E ligada a este difícil processo histórico, há sempre a tentação de se retirar para o passado (mesmo usando novas formulações), porque mais tranquilizador, conhecido e seguramente menos conflituoso. Mas também isto faz parte do processo e do risco de iniciar mudanças significativas.[19]

Aqui é necessário advertir contra a tentação de assumir a atitude da rigidez. Esta nasce do medo da mudança e acaba por disseminar estacas e obstáculos pelo terreno do bem comum, tornando-o um campo minado de incomunicabilidade e ódio. Lembremo-nos sempre de que, por trás de qualquer rigidez, jaz um desequilíbrio. A rigidez e o desequilíbrio nutrem-se, mutuamente, num círculo vicioso. E, hoje, esta tentação da rigidez é tão atual!

Queridos irmãos e irmãs!

A Cúria Romana não é um corpo separado da realidade – embora o risco esteja sempre presente –, mas deve ser concebida e vivida no hoje do caminho percorrido pelos homens e as mulheres, na lógica da mudança de época. A Cúria Romana não é um palácio ou um armário cheio de roupas que se hão de vestir para justificar uma mudança. A Cúria Romana é um corpo vivo, e sê-lo-á tanto mais quanto mais viver a integralidade do Evangelho.

O cardeal Martini, na última entrevista dada poucos dias antes da sua morte, disse palavras que nos devem interpelar: «A Igreja ficou atrasada duzentos anos. Como é possível que não se alvorace? Temos medo? Medo, em vez de coragem? No entanto, a fé é o fundamento da Igreja. A fé, a confiança, a coragem. (...) Só o amor vence o cansaço».[20]

O Natal é a festa do amor de Deus por nós. O amor divino que inspira, dirige e corrige a mudança e vence o medo humano de deixar o «seguro» para se lançar no «mistério».

Feliz Natal para todos!

***

Na preparação para o Natal, as pregações escutadas foram sobre a Santa Mãe de Deus. Dirijamo-nos a Ela antes da bênção.

[Ave Maria e Bênção]

Agora gostaria de vos dar uma lembrança, uma prenda: dois livros. O primeiro é o «documento» – chamemo-lo assim – que eu quis fazer para o mês missionário extraordinário [outubro de 2019], aparecendo sob a forma de entrevista e com o título Sem Ele nada podemos fazer. Inspirou-me uma frase – não sei de quem – que dizia: quando o missionário chega a um lugar, já está lá o Espírito Santo à espera dele. Nisto se inspira o documento. E o segundo é um retiro dado aos sacerdotes, há pouco tempo, pelo Padre Luís Maria Epicoco: um retiro para os sacerdotes, Alguém por modelo. De coração, vo-los ofereço para servirem a toda a comunidade. Obrigado!

 
 
 
[1]Matta El Meskin, L’umanità di Dio (Qiqajon-Bose, Magnano 2015), 170-171.

[2]Quis dives salvetur 37, 1-6.

[3]Sermão «A Encarnação, Mistério de Graça», in Parochial and Plain Sermons, V, 7.

[4]Ibidem: o. c., V, 97-98.

[5]Meditazioni e preghiere, ed. G. Velocci, Milão 2002,p. 75.

[6] Numa das suas orações, Newman afirmava: «Não há nada de estável fora de Vós, ó meu Deus. Vós sois o centro e a vida de todos aqueles que mudam, que confiam em Vós como seu Pai, que levantam os olhos para Vós e que são felizes por se colocarem nas vossas mãos. Eu sei, meu Deus, que devo mudar, se quiser ver o vosso rosto» (Ibid., p. 112).

[7]Assim a descreve Newman: «No momento da conversão, não tive consciência de qualquer mudança, intelectual ou moral, que pudesse ter ocorrido no meu espírito (…), parecia-me reentrar no porto, depois duma navegação tempestuosa; e a este respeito a minha felicidade continuou ininterruptamente até hoje» (Apologia pro vita sua, ed. A. Bosi, Turim 1988, 360; cf. J. Honoré, Gli aforismi di Newman, Livraria Editora Vaticana, Cidade do Vaticano 2010, 167).

[8]J. M. Bergoglio, Mensagem quaresmal aos sacerdotes e consagrados, 21/II/2007, in Nei tuoi occhi è la mia parola (Milão 2016), p. 501.

[9]Veja-se Const. ap. Veritatis gaudium (27/XII/2017), 3: «Em última análise, trata-se de mudar o modelo de desenvolvimento global e de redefinir o progresso: o problema é que não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise e há necessidade de construir lideranças que tracem caminhos».

[10] Entrevista concedida ao P. António Spadaro: La Civiltà Cattolica (19/IX/2013), p. 468.

[11] Carta ao Povo de Deus que está em caminho na Alemanha, 29/VI/2019.

[12] Cf. Discurso à Cúria, 22/XII/2016.

[13] Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8/XII/1975), 14. São João Paulo II, por sua vez, escreveu que a evangelização missionária «constitui o primeiro serviço que a Igreja pode prestar ao homem e à humanidade inteira, no mundo de hoje, que, apesar de conhecer realizações maravilhosas, parece ter perdido o sentido último das coisas e da sua própria existência» (Carta enc. Redemptoris missio (7/XII/1990), 2).

[14] Cf. Discurso aos participantes no Congresso Internacional da Pastoral das Grandes Cidades, 27/XI/2014.

[15] Carta ap. sob forma de Motu proprio Porta fidei (11/X/2011), 2.

[16] Bento XVI, Homilia (28/VI/2010); cf. Carta ap. sob forma de Motu proprio Ubicumque et semper (17/X/2010).

[17] A mudança de época foi sentida na França pelo cardeal Suhard (veja-se a sua carta pastoral Essor ou déclin de l'Église, 1947) e de igual modo por J.B. Montini, quando era Arcebispo de Milão: questionava-se, ele também, se a Itália fosse ainda um país católico (cf. Intervenção na VIII Semana Nacional de Atualização Pastoral, 22/IX/1958, in Discorsi e Scritti milanesi 1954-1963, vol. II, Brescia-Roma 1997, 2328).

[18] Há cerca de cinquenta anos, São Paulo VI, ao apresentar o novo Missal Romano aos fiéis, lembrou a equação entre a lei da oração (lex orandi) e a lei da fé (lex credendi) e descreveu o Missal como «demonstração de fidelidade e vitalidade». Ao concluir a sua reflexão, afirmou: «Por isso não falamos de “nova Missa», mas de “nova época” da vida da Igreja» (Audiência Geral, 19/XI/1969). E, de forma análoga, se poderia dizer no nosso caso: não uma nova Cúria Romana, mas uma nova era.

[19] A Exortação apostólica Evangelii gaudium enuncia a regra de «privilegiar as ações que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificarem em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes» (n. 223).

[20] Entrevista dada a Jorge Sporschill SJ e Frederica Radice Fossati Confalonieri, in Corriere della Sera (01/IX/2012).

 



Copyright © Dicastero per la Comunicazione - Libreria Editrice Vaticana