JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA
RETIRO ESPIRITUAL GUIADO PELO PAPA FRANCISCO
POR OCASIÃO DO JUBILEU DOS SACERDOTES
SEGUNDA MEDITAÇÃO
Basílica de Santa Maria Maior - Quinta-feira, 2 de junho de 2016
Segunda Meditação: O recetáculo da Misericórdia
Depois de termos rezado sobre aquela «dignidade envergonhada» e «vergonha dignificada», que é o fruto da misericórdia, prosseguimos com esta meditação sobre o «recetáculo da Misericórdia». É simples. Poderia dizer uma frase e ir-me embora, porque é um só: o recetáculo da Misericórdia é o nosso pecado. É tão simples. Mas muitas vezes acontece que o nosso pecado é como um coador, como um cântaro furado por onde se perde a graça em pouco tempo: «Porque o meu povo cometeu um duplo crime: abandonou-me a Mim, nascente de águas vivas, e construiu cisternas para si, cisternas rotas, que não podem reter as águas» (Jr 2, 13). Daí a necessidade que o Senhor lembra explicitamente a Pedro de «perdoar setenta vezes sete». Deus não Se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir perdão. Deus não se cansa de perdoar, mesmo quando vê que a sua graça parece não conseguir criar raízes fortes no terreno do nosso coração, que é caminho duro, agreste e pedregoso. Por uma razão muito simples: Deus não é pelagiano e, por isso, não se cansa de perdoar. Volta a semear a sua misericórdia e o seu perdão: volta uma vez, outra e outra… setenta vezes sete.
Podemos, porém, dar mais um passo nesta misericórdia de Deus, que é sempre «maior que a nossa consciência» de pecado, e reconhecer não apenas que o Senhor não se cansa de perdoar, mas também que renova o odre em que recebemos o seu perdão. Usa um odre novo para o vinho novo da sua misericórdia, para que não seja como um vestido remendado ou um odre velho. E aquele odre é a sua própria misericórdia: a sua misericórdia experimentada em nós mesmos e posta em prática por nós ajudando os outros. O coração «misericordiado» não é um coração remendado, mas um coração novo, recriado; aquele coração de que fala David: «Cria em mim, ó Deus, um coração puro; renova e dá firmeza ao meu espírito» (Sal 50, 12). Este coração novo, recriado, é um bom recipiente. A liturgia expressa a alma da Igreja, quando nos faz dizer esta oração encantadora: «Senhor nosso Deus, que de modo admirável criastes o homem e de modo mais admirável o redimistes» (Oração na Vigília Pascal, depois da Primeira Leitura). Por conseguinte, esta segunda criação é ainda mais admirável do que a primeira. É um coração que se reconhece recriado graças à fusão da sua miséria com o perdão de Deus e, por isso, é um coração «misericordiado» e misericordioso. Ou seja, experimenta os benefícios que a graça opera sobre a sua ferida e o seu pecado, sente que a misericórdia pacifica a sua culpa, inunda de amor a sua aridez, reacende a sua esperança. Por isso quando, ao mesmo tempo e com a mesma graça, perdoa a quem tem qualquer dívida para com ele e se compadece dos que também são pecadores, esta misericórdia lança raízes numa terra boa, onde a água não se perde mas dá vida. No exercício desta misericórdia que repara o mal alheio, não há ninguém melhor para ajudar a curá-lo do que a pessoa que possui viva a sensação de ter sido «misericordiada» do mesmo mal. Olha para ti mesmo, repassa a tua história; conta a ti mesmo a tua história; e nela encontrarás tanta misericórdia. Vemos como, entre aqueles que trabalham com viciados, as pessoas que melhor compreendem, ajudam e sabem exigir dos outros são habitualmente aquelas que foram resgatadas. E o melhor confessor costuma ser o que melhor se confessa. E podemos questionar-nos: como me confesso? Quase todos os grandes Santos foram grandes pecadores ou, como Santa Teresinha, estavam cientes de que se devia a pura graça preveniente o facto de não o serem.
Assim, o verdadeiro recipiente da misericórdia é a própria misericórdia que cada um recebeu e lhe recriou o coração, que é o «odre novo» de que fala Jesus (cf. Lc 5, 37), o «poço sanado».
Encontramo-nos assim no âmbito do mistério do Filho, de Jesus, que é a misericórdia do Pai feita carne. Através das chagas do Senhor ressuscitado, individuamos a imagem definitiva do recetáculo da misericórdia: uma imagem dos vestígios do pecado cancelado por Deus, que não se apaga totalmente nem supura (são cicatrizes, não feridas purulentas). As chagas do Senhor. São Bernardo tem dois sermões estupendos sobre as chagas do Senhor. Lá, nas cicatrizes do Senhor, encontramos a misericórdia. Com desassombro, diz São Bernardo: Sentes-te perdido? Sentes-te mal? Entra lá, entra nas chagas do Senhor e lá encontrarás misericórdia. Na «sensibilidade» própria das cicatrizes, que nos lembram a ferida sem doer muito e a cura sem nos esquecermos da fragilidade, lá tem a sua sede a misericórdia divina: nas nossas cicatrizes. As chagas do Senhor, que permanecem ainda agora, levou-as consigo: o corpo belíssimo, as pisaduras não existem, mas as chagas quis levá-las consigo. E as nossas cicatrizes. Acontece a todos nós, quando vamos a uma visita médica e temos qualquer cicatriz, ouvir o médico perguntar-nos: «Por que motivo foi esta intervenção?» Olhemos as cicatrizes da alma: esta intervenção que o Senhor fez, com a sua misericórdia nos curou… Na sensibilidade de Cristo ressuscitado que conserva as suas chagas não só nos pés e nas mãos mas também no próprio coração, que é um coração chagado, encontramos o justo sentido do pecado e da graça. Lá, no coração chagado. Ao contemplar o coração chagado do Senhor, espelhamo-nos nele. O nosso coração e o d’Ele assemelham-se no facto que os dois estão chagados e ressuscitados. Mas sabemos que o seu era puro amor, e ficou chagado porque aceitou tornar-se vulnerável; enquanto o nosso era pura chaga, que ficou curada porque aceitou ser amada. Nesta aceitação, forma-se o recetáculo da Misericórdia.
Os nossos Santos receberam a misericórdia
Pode fazer-nos bem contemplar outros que se deixaram recriar o coração pela misericórdia e fixar em que «recetáculo» a receberam.
Paulo recebe-a no recetáculo duro e inflexível do seu juízo moldado pela Lei. A sua dureza de juízo impelia-o a ser um perseguidor. A misericórdia transforma-o de tal maneira que, ao mesmo tempo que se consagra a buscar os mais afastados, ou seja, os de mentalidade pagã, é também o mais compreensivo e misericordioso para com aqueles que eram como tinha sido ele. Paulo não se importava de ser considerado anátema, contanto que se salvassem os seus. O seu juízo consolida-se «não se julgando sequer a si mesmo», mas deixando-se justificar por um Deus que é maior do que a sua consciência, apelando para um advogado que é fiel, Jesus Cristo, de cujo amor nada e ninguém o pode separar. A radicalidade dos juízos de Paulo sobre a misericórdia incondicional de Deus, que supera a ferida de fundo – a que nos faz ter duas leis (a lei da carne e a do Espírito) –, é assim porque o recipiente duma mente sensível ao caráter absoluto da verdade foi ferido precisamente onde a Lei e a Luz se tornam uma armadilha. O famoso «espinho» que o Senhor não lhe tira é o recetáculo onde Paulo recebe a misericórdia do Senhor (cf. 2 Cor 12, 7).
Pedro recebe a misericórdia na sua presunção de homem sensato. Era sensato com o firme e experimentado bom senso dum pescador, que sabe por experiência quando se pode pescar ou não. É a sensatez de alguém que, quando se entusiasma com caminhar sobre as águas e obter uma pesca milagrosa mas excede-se olhando para si mesmo, sabe pedir ajuda ao único que o pode salvar. Este Pedro foi curado na ferida mais profunda que se pode ter: a de renegar o amigo. Talvez tenha a ver com isto a censura de Paulo, quando lhe atira à cara a sua duplicidade. Poderia parecer que Paulo sentisse que fora o pior «antes» de conhecer Cristo; mas Pedro, depois de O conhecer, renegava-O... Mas o facto de ter sido curado nisso, transformou Pedro num pastor misericordioso, numa pedra sólida sobre a qual sempre se pode construir, porque é pedra frágil que foi curada, não uma pedra que, na sua contundência, faz tropeçar o mais fraco. Pedro é o discípulo que o Senhor mais corrige no Evangelho. É aquele em que «malha» mais! Corrige-o constantemente, até ao derradeiro momento quando lhe diz: «Que tens tu com isso? Tu, pensa em seguir-Me!» (cf. Jo 21, 22). A tradição diz que Jesus lhe apareceu de novo quando Pedro está para fugir de Roma. O sinal de Pedro crucificado de cabeça para baixo é talvez o mais eloquente deste recetáculo duma cabeça dura que, para ser «misericordiada», se vira para baixo mesmo quando está a dar o testemunho supremo de amor ao seu Senhor. Pedro não quer terminar a sua vida dizendo «eu já aprendi a lição», mas sim: «Dado que a minha cabeça nunca vai aprender, viro-a para baixo». E acima de tudo, os pés que lavou o Senhor. Estes pés são, para Pedro, o recetáculo através do qual recebe a misericórdia do seu Amigo e Senhor.
João será curado no seu orgulho de querer reparar o mal com o fogo e acabará por ser aquele que escreve «filhinhos meus», parecendo um daqueles avozinhos bons que só fala de amor, ele que fora «o filho do trovão» (Mc 3, 17).
Agostinho foi curado na sua nostalgia de ter chegado tarde à meta: isto fazia-o sofrer tanto e, naquela nostalgia, foi curado. «Tarde te amei»; e encontrará a maneira criativa de encher de amor o tempo perdido escrevendo as suas Confissões.
Francisco é progressivamente «misericordiado» em muitos momentos da sua vida. Talvez o recetáculo definitivo que se tornou em chagas reais, mais do que beijar o leproso, desposar-se com a senhora pobreza e sentir toda a criatura como irmã, terá sido o dever guardar, em silêncio misericordioso, a Ordem que fundara. Aqui encontro o grande heroísmo de Francisco: o dever guardar, em silêncio misericordioso, a Ordem que fundara. Este é o seu grande recetáculo da misericórdia. Francisco vê que os seus irmãos se dividem tomando por bandeira a própria pobreza. O diabo faz-nos lutar entre nós, defendendo as coisas mais santas mas «com mau espírito».
Inácio foi curado na sua vaidade e, se isto foi o recipiente, podemos intuir quão grande era aquele desejo de vanglória, que foi recriado numa tal busca da maior glória de Deus.
No Diário dum Pároco de Aldeia, Bernanos narra-nos a vida dum pároco da aldeia, inspirando-se na vida do Santo Cura d'Ars. Há dois parágrafos muito belos que descrevem os pensamentos íntimos do pároco nos últimos momentos da sua inesperada doença: «Nas últimas semanas, que Deus me conceda continuar carregando a carga da paróquia (...) procurarei agir menos preocupado com o futuro, vou trabalhar só para o presente. Esta espécie de trabalho parece feita à minha medida... Pois só tenho sucesso nas pequenas coisas. E, se frequentemente fui provado pela ansiedade, tenho de reconhecer que triunfo nas minúsculas alegrias». Ou seja, um recipiente da misericórdia, pequenino, tem a ver com as minúsculas alegrias da nossa vida pastoral, onde podemos receber e exercer a misericórdia infinita do Pai em pequenos gestos. Os pequenos gestos dos padres.
No outro parágrafo, diz: «Já tudo acabou. Aquela espécie de desconfiança que tinha de mim, da minha pessoa, acaba de dissipar-se – creio que para sempre. A luta terminou. Já não vejo razão para ela. Reconciliei-me comigo mesmo, com estes despojos que sou. Odiar-se é mais fácil do que se crê. A graça é esquecer-se. Entretanto se todo o orgulho morresse em nós, a graça das graças seria apenas amar-se humildemente a si mesmo, como um qualquer dos membros sofredores de Jesus Cristo». Eis aqui o recipiente: «amar-se humildemente a si mesmo, como um qualquer dos membros sofredores de Jesus Cristo». É um recipiente comum, como um velho cântaro que podemos pedir emprestado aos mais pobres.
O Cura Brochero – é da minha pátria –, o Beato argentino que em breve será canonizado, «deixou-se trabalhar o coração pela misericórdia de Deus». O seu recetáculo acabou por ser o seu próprio corpo leproso; ele, que sonhava morrer cavalgando, atravessando algum rio da serra para ir dar a unção a algum doente. Uma das suas últimas frases foi: «Não há glória perfeita nesta vida». Isto há-de fazer-nos pensar: «Não há glória perfeita nesta vida». «Eu estou muito conformado com o que fez comigo quanto à vista, e por isso Lhe dou muitas graças». A lepra tornara-o cego. «Enquanto pude servir a humanidade, conservou-me íntegros e robustos os meus sentidos. Hoje, que já não posso, inutilizou-me um dos sentidos do corpo. Neste mundo, não há glória perfeita, e estamos cheios de misérias». Muitas vezes as nossas coisas ficam a meio e, por isso, sair de si mesmo é sempre uma graça. Seja-nos concedido «deixar as coisas», para que o Senhor as abençoe e aperfeiçoe. Não devemos preocupar-nos muito. Isto permite abrir-nos às dores e às alegrias dos nossos irmãos. E o Cardeal Van Thuan dizia que, na prisão, o Senhor lhe ensinara a distinguir entre «as coisas de Deus – aquelas a que se dedicara, durante a sua vida em liberdade, como padre e bispo – e o próprio Deus, a quem se dedicava estando preso» (cf. Cinco pães e dois peixes, Edições San Paolo, 1997). E poderíamos continuar de igual modo com outros Santos, procurando ver como era o recetáculo da sua misericórdia. Mas agora passemos a Nossa Senhora: estamos na sua casa!
Maria como recipiente e fonte de Misericórdia
Subindo a escada dos Santos, à procura dos recipientes da misericórdia, chegamos a Nossa Senhora. O recipiente simples e perfeito, através do qual se pode receber e distribuir a misericórdia, é Ela. O seu «sim» livre à graça é a imagem oposta do pecado que levou o filho pródigo ao nada. Maria detém, em Si mesma, uma misericórdia que é simultaneamente muito d’Ela, muito da nossa alma e muito da Igreja. Como diz no Magnificat, sente que um olhar de bondade pousou na sua pequenez e sabe ver como a misericórdia de Deus alcança todas as gerações. Sabe ver as obras que desenvolve esta misericórdia e sente-se «acolhida», juntamente com todo o Israel, por tal misericórdia. Guarda a memória e a promessa da misericórdia infinita de Deus para com o seu povo. O seu é o Magnificat dum coração íntegro, não esburacado, que olha a história e cada pessoa com a sua misericórdia maternal.
Naquele tempo que o povo mexicano me presenteou para o transcorrer a sós com Maria, olhando para Nossa Senhora, a Virgem de Guadalupe, e deixando-me olhar por Ela, pedi-Lhe por vós, queridos sacerdotes, para que sejais bons padres. Já o disse muitas vezes. E, no discurso aos Bispos, disse-lhes que refletira longamente sobre o mistério do olhar de Maria, sobre o seu carinho e a sua doçura que nos infunde coragem para nos deixarmos «misericordiar» por Deus. Gostaria agora de vos lembrar alguns «modos» de olhar que tem Nossa Senhora, especialmente os seus sacerdotes, já que, por nosso intermédio, quer olhar o seu povo.
Maria olha-nos dum modo tal que nos sentimos acolhidos no seu regaço. Ela ensina-nos que «a única força capaz de conquistar o coração dos homens é a ternura de Deus. Aquilo que encanta e atrai, aquilo que abranda e vence, aquilo que abre e liberta das cadeias não é a força dos meios nem a dureza da lei, mas a fragilidade omnipotente do amor divino, que é a força irresistível da sua doçura e a promessa irreversível da sua misericórdia» (Discurso aos Bispos do México, 13 de fevereiro de 2016). Aquilo que o vosso povo busca nos olhos de Maria é «um regaço no qual os homens, sempre órfãos e deserdados, buscam um abrigo, um lar». E isto tem a ver com os seus modos de olhar: o espaço que abrem os seus olhos é o dum regaço, não o dum tribunal ou dum consultório «profissional». Se alguma vez notardes que se endureceu o vosso olhar – por causa do trabalho, do cansaço… acontece a todos –, que quando veem as pessoas sentis fastídio ou não sentis nada, parai e voltai a fixá-La, olhai-A com os olhos dos mais pequeninos do vosso povo, pedindo colo, e Ela vos limpará o olhar de todas as «cataratas» que não deixam ver Cristo nas almas, curar-vos-á de toda a miopia que torna indistintas as necessidades das pessoas, que são as do Senhor encarnado, e curar-vos-á de toda a presbiopia que perde os detalhes, as observações escritas em «letra miudinha», onde se jogam as realidades importantes da vida da Igreja e da família. O olhar de Nossa Senhora cura.
Outro «modo de olhar de Maria» tem a ver com a tecelagem: Maria olha «tecendo», vendo como pode combinar para bem todas as coisas que o vosso povo Lhe apresenta. Dizia aos bispos mexicanos que «no manto da alma mexicana, Deus teceu, com o fio dos traços mestiços do seu povo, o rosto da sua manifestação na Morenita» (Ibid.). Um Mestre espiritual ensina que aquilo que se afirma de Maria em sentido especial, diz-se da Igreja em sentido universal e de cada alma em particular (cf. Isaque da Estrela, Serm. 51: PL 194, 1863). Ao ver como Deus teceu o rosto e a figura da Guadalupana no avental de Juan Diego, podemos rezar contemplando como tece a nossa alma e a vida da Igreja. Dizem que não se consegue ver como pôde ser «pintada» a imagem. É como se estivesse estampada. Gosto de pensar que o milagre não foi apenas «estampar ou pintar a imagem com um pincel» mas que «se recriou o manto inteiro», foi transfigurado de cima abaixo e cada fio – aqueles que as mulheres aprendem a tecer desde pequenas e, para as peças de vestuário mais finas, usam as fibras do coração do maguey (o talo donde tiram os fios) – cada fio que ocupava o seu lugar foi transfigurado, assumindo os detalhes que brilham no seu lugar e, entrelaçados com os demais igualmente transfigurados, fazem aparecer o rosto de Nossa Senhora e toda a sua figura e o que a rodeia. A misericórdia faz a mesma coisa connosco: não nos «pinta» por fora uma cara de bons, não nos faz o photoshop, mas com os próprios fios das nossas «misérias – precisamente com esses – e dos nossos pecados – precisamente com esses –, entrelaçados com amor de Pai, tece-nos de tal maneira que a nossa alma se renova recuperando a sua verdadeira imagem: a de Jesus. Por isso, sede sacerdotes «capazes de imitar esta liberdade de Deus, escolhendo o que é humilde para manifestar a majestade do seu rosto e copiar esta paciência divina ao tecer, com o fio subtil da humanidade que encontrais, aquele homem novo que o vosso país espera. Não vos deixeis levar pela vã pretensão de mudar de paróquia – é uma nossa tentação: «Pedirei ao bispo para me transferir…» – como se o amor de Deus não tivesse força suficiente para a mudar» (Discurso aos Bispos do México, 13 de fevereiro de 2016).
O terceiro modo – como olha Nossa Senhora – é o da atenção: Maria olha com atenção, concentra-Se toda e envolve-Se inteiramente com a pessoa que tem à sua frente, como uma mãe quando só tem olhos para o seu filhinho que lhe conta alguma coisa. E as próprias mães, quando o menino é muito pequeno, imitam a voz do filhinho para lhe fazer vir as palavras. Fazem-se pequeninas. «Como ensina a bela tradição guadalupana – e continuo com a referência ao México –, a Morenita guarda os olhares daqueles que A contemplam, reflete o rosto daqueles que A encontram. É necessário aprender que há algo de irrepetível em cada pessoa que olha para nós à procura de Deus: nem todos nos olham do mesmo modo. Compete-nos a nós tornar-nos permeáveis a tais olhares» (ibid.). Um sacerdote, um padre que se torna impermeável aos olhares está fechado em si mesmo. «Guardar em nós cada um deles, conservá-los no coração, protegê-los. Só uma Igreja capaz de proteger o rosto dos seres humanos que vão bater à sua porta, será capaz de lhes falar de Deus» (ibid.). Se tu não és capaz de guardar o rosto dos homens que batem à tua porta, não serás capaz de lhes falar de Deus. «Se não deciframos os seus sofrimentos, se não nos damos conta das suas necessidades, nada poderemos oferecer-lhes. A riqueza que temos só flui quando encontramos a pequenez daqueles que mendigam e tal encontro realiza-se precisamente no nosso coração de pastores» (Ibid.). Aos vossos bispos, pedi que prestassem atenção a vós, sacerdotes, que «não vos deixem expostos à solidão e ao abandono, como presa do mundanismo que devora o coração» (Ibid.). O mundo observa-nos com atenção, mas para nos «devorar», para transformar-nos em consumidores… Precisamos todos que nos olhem com atenção, mas – digamos – desinteressadamente. «Estai atentos – dizia eu aos bispos – e aprendei a ler os olhares dos vossos sacerdotes, para vos alegrardes com eles quando se sentem felizes contando tudo o que “fizeram e ensinaram” (Mc 6, 30), e para não os abandonardes quando se sentem um pouco desanimados, só conseguindo chorar porque “negaram o Senhor” (cf. Lc 22, 61-62), e também para os apoiardes (…), em comunhão com Cristo, quando algum, já abatido, sair com Judas “na noite” (cf. Jo 13, 30). Nestas situações, nunca falte a vossa paternidade de bispos para com os vossos sacerdotes. Encorajai a comunhão entre eles; fazei com que possam aperfeiçoar os seus dons; inseri-os nas grandes causas, porque o coração do apóstolo não foi feito para coisas pequenas» (Ibid.).
Finalmente, como olha Maria? Maria olha de modo «integral», unindo tudo: o nosso passado, presente e futuro. Não tem uma visão fragmentada: a misericórdia sabe ver a totalidade e intui aquilo que é mais necessário. Como sucedeu em Caná, quando Maria foi capaz de «compadecer-Se» antecipadamente da aflição que acarretaria a falta de vinho na festa nupcial e pede a Jesus para lhe dar solução sem ninguém se aperceber, de igual forma podemos ver toda a nossa vida sacerdotal como que «antecipada pela misericórdia» de Maria, que, prevendo as nossas necessidades, providenciou tudo o que temos. Se existe algum «vinho bom» na nossa vida, não é por mérito nosso, mas pela «misericórdia preveniente» d’Aquela que já, no Magnificat, canta como o Senhor bondosamente «pôs os olhos na humildade da sua serva» e «Se lembrou da sua [aliança de] misericórdia», uma «misericórdia [que] se estende de geração em geração» sobre os pobres e oprimidos. A leitura aqui feita por Maria é a leitura da história como misericórdia.
Podemos terminar rezando a «Salvé Rainha», em cujas invocações ecoa o espírito do Magnificat. Maria é a Mãe de Misericórdia, vida, doçura e esperança nossa. E quando vós, sacerdotes, tendes momentos escuros, maus, quando não sabeis como desenvencilhar-vos no mais íntimo do vosso coração, não digo apenas «levantai os olhos para a Mãe» (isso naturalmente deveis fazê-lo), mas: «Ide até junto d’Ela e deixai-vos olhar por Ela, em silêncio, mesmo adormentando-vos. Isto fará com que, naqueles maus momentos, talvez com tantos erros que cometestes e vos levaram até esse ponto, toda aquela imundície se torne recetáculo de misericórdia. Deixai-vos olhar por Nossa Senhora. Os seus olhos misericordiosos são aqueles que consideramos o melhor recipiente da misericórdia, pois é possível beber neles aquele olhar indulgente e bom de que temos sede, e uma sede tal que só se pode ter depois de A contemplar. Além disso aqueles olhos misericordiosos fazem-nos ver as obras da misericórdia de Deus na história dos homens e descobrir Jesus nos seus rostos. Em Maria, encontramos a terra prometida – o Reino da misericórdia estabelecido pelo Senhor – que encontramos, já nesta vida, depois de cada desterro a que nos condena o pecado. Tomados pela sua mão e agarrando-nos ao seu manto. No meu gabinete, tenho uma linda imagem, que me ofereceu o Padre Rupnik – feita por ele –, da Synkatabasis: é Ela que faz descer Jesus e as suas mãos são uma espécie de degraus. Mas aquilo de mais gosto é ver Jesus que numa mão tem a plenitude da Lei e, com a outra, agarra-Se ao manto de Nossa Senhora: também Ele Se agarrou ao manto de Nossa Senhora. E a tradição russa, os monges, os antigos monges russos dizem-nos que, nas turbulências espirituais, é preciso encontrar refúgio sob o manto de Nossa Senhora. Esta é a primeira antífona do Ocidente: «Sub tuum praesidium». O manto de Nossa Senhora. Não tenhais vergonha, não façais grandes discursos, mas permanecei lá e deixai-vos cobrir, deixai-vos olhar; e… chorai. Quando encontramos um sacerdote capaz disto, de ir ter com a Mãe e chorar, com tantos pecados, eu posso dizer: é um bom padre, porque é um bom filho. Será um bom pai. Tomados pela mão dela e sob o seu olhar, podemos cantar, com alegria, as grandezas do Senhor. Podemos dizer-Lhe: A minha alma canta para Vós, Senhor, porque olhastes com bondade para a humildade e pequenez do vosso servidor. Feliz de mim, que fui perdoado! A vossa misericórdia, que usastes com todos os vossos Santos e com todo o vosso povo fiel, também chegou a mim. Vivi distraído, buscando os meus interesses, pelo orgulho do meu coração, mas não ocupei nenhum trono, Senhor, e a minha única possibilidade de exaltação é que a vossa Mãe me tome ao seu colo, me cubra com o seu manto e me ponha junto do seu coração. Quero ser amado por Vós como um entre os mais humildes do vosso povo, saciar com o vosso pão os que têm fome de Vós. Recordai-Vos, Senhor, da vossa aliança de misericórdia com os vossos filhos, os sacerdotes do vosso povo. Possamos, com Maria, ser sinal e sacramento da vossa misericórdia.
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