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SÍNODO DOS BISPOS

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XIV ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA

A VOCAÇÃO E A MISSÃO DA FAMÍLIA
NA IGREJA E NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

INSTRUMENTUM LABORIS

Cidade do Vaticano
2015

ÍNDICE

SIGLAS
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO

I PARTE
A ESCUTA DOS DESAFIOS SOBRE A FAMÍLIA

Capítulo I
A Família e o contexto antropológico-cultural

O contexto sociocultural
A mudança antropológica
As contradições culturais
As contradições sociais
Fragilidade e força da família

Capítulo II
A família e o contexto socioeconómico

A família recurso insubstituível da sociedade
Políticas a favor da família
O desafio da solidão e da precariedade
O desafio económico
O desafio da pobreza e a exclusão social
O desafio ecológico

Capítulo III
Família e inclusão

A terceira idade
O desafio da viuvez
A última fase da vida e o luto em família
O desafio da deficiência
O desafio das migrações
Alguns desafios peculiares
A família e as crianças
O papel das mulheres

Capítulo IV
Família, afectividade e vida

A relevância da vida afectiva
A formação da afectividade
Fragilidade e imaturidade afectivas
O desafio bioético
O desafio para a pastoral

II PARTE

O DISCERNIMENTO DA VOCAÇÃO FAMILIAR

Capítulo I
Família e pedagogia divina

O olhar sobre Jesus e a pedagogia divina na história da salvação
A Palavra de Deus em família
A pedagogia divina
Matrimónio natural e plenitude sacramental
Jesus e a família
A indissolubilidade dom e tarefa
O estilo da vida familiar
A família no desígnio salvífico de Deus
União e fecundidade dos cônjuges
A família imagem da Trindade

Capítulo II
Família e vida da Igreja

A família nos documentos da Igreja
A dimensão missionária da família
A família caminho da Igreja
A medida divina do amor
A família em oração
Família e fé
Catequese e família
A indissolubilidade do matrimónio e a alegria de viver juntos

Capítulo III
Família e caminho rumo à sua plenitude

O mistério criatural do matrimónio
Verdade e beleza da família e misericórdia para com as famílias feridas e frágeis

O vínculo íntimo entre Igreja e família
A família dom e tarefa
Ajudar a alcançar a plenitude
Os jovens e o medo de casar
A misericórdia é verdade revelada

III PARTE

A MISSÃO DA FAMÍLIA HOJE

Capítulo I
Família e evangelização

Anunciar o Evangelho da família hoje, nos vários contextos
Ternura em família – ternura de Deus
A família protagonista da pastoral
A liturgia nupcial
A família obra de Deus
Conversão missionária e linguagem renovada
A mediação cultural
A Palavra de Deus fonte de vida espiritual para a família
A sinfonia das diferenças

Capítulo II
Família e formação

A preparação para o matrimónio
A formação dos futuros presbíteros
A formação do clero e dos agentes no campo da pastoral
Família e instituições públicas
O compromisso sociopolítico a favor da família
Indigência e risco de usura
Orientar os nubentes no caminho de preparação para o matrimónio

Acompanhar os primeiros anos da vida matrimonial

Capítulo III
Família e acompanhamento eclesial

Cuidado pastoral de quantos vivem no matrimónio civil ou convivem
A caminho do sacramento nupcial
Curar as famílias feridas (separados, divorciados não recasados, divorciados recasados, famílias monoparentais)
O perdão em família
«O grande rio da misericórdia»
A arte do acompanhamento
Os separados e os divorciados fiéis ao vínculo
Deus nunca abandona
A simplificação dos procedimentos e a relevância da fé nas causas de nulidade
A preparação dos agentes e o incremento dos tribunais.
Linhas pastorais comuns
A integração dos divorciados recasados civilmente na comunidade cristã
O caminho penitencial
A participação espiritual na comunhão eclesial
Matrimónios mistos e com disparidade de culto
A peculiaridade da tradição ortodoxa
A atenção pastoral às pessoas com tendência homossexual

Capítulo IV
Família, generatividade, educação

A transmissão da vida e o desafio da diminuição da natalidade
A responsabilidade generativa
Adopção e acolhimento
A vida humana mistério intangível
O desafio da educação e o papel da família na evangelização

CONCLUSÃO

SIGLAS

AA Concílio Ecuménico Vaticano II, Decreto Apostolicam Actuositatem (18 de Novembro de 1965)
AG Concílio Ecuménico Vaticano II, Decreto Ad Gentes (7 de Dezembro de 1965)
CIC Catecismo da Igreja Católica (15 de Agosto de 1997)
CiV Bento XVI, Carta Encíclica Caritas in Veritate (29 de Junho de 2009)
DC Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, Instrução Dignitas Connubii (25 de Janeiro de 2005)
DCE Bento XVI, Carta Encíclica Deus Caritas Est (25 de Dezembro de 2005)
DeV São João Paulo II, Carta Encíclica Dominum et Vivificantem (18 de Maio de 1986)
GS Concílio Ecuménico Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes (7 de Dezembro de 1965)
EdE São João Paulo II, Carta Encíclica, Ecclesia de Eucharistia (17 de Abril de 2003)
EG Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (24 de Novembro de 2013)
EN São João Paulo II, Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (8 de Dezembro de 1975)
FC São João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris Consortio (22 de Novembro de 1981)
IL III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, Os desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização. Instrumentum Laboris (24 de Junho de 2014)
LF Francisco, Carta Encíclica Lumen Fidei (29 de Junho de 2013)
LG Concílio Ecuménico Vaticano II, Constituição Dogmática Lumen Gentium (21 de Novembro de 1964)
MV Francisco, Bula Misericordiae Vultus (11 de Abril de 2015)
NA Concílio Ecuménico Vaticano II, Decreto Nostra Aetate (28 de Outubro de 1965)
NMI São João Paulo II, Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte (6 de Janeiro de 2001)
RM São João Paulo II, Carta Encíclica Redemptoris Missio (7 de Dezembro de 1990)

APRESENTAÇÃO

Está a chegar ao fim o tempo intersinodal, durante o qual o Santo Padre Francisco confiou à Igreja inteira a tarefa de «maturar, com verdadeiro discernimento espiritual, as ideias propostas e encontrar soluções concretas para tantas dificuldades e os inúmeros desafios que as famílias devem enfrentar» (Discurso no encerramento da III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, 18 de Outubro de 2014).

Depois de ter meditado, na III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos de Outubro de 2014, sobre Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização, a XIV Assembleia Geral Ordinária, que terá lugar de 4 a 25 de Outubro de 2015, tratará sobre o tema A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo. O longo caminho sinodal mostra-se assim marcado por três momentos intimamente interligados: a escuta dos desafios da família, o discernimento da sua vocação, a reflexão sobre a sua missão.

A Relatio Synodi, fruto amadurecido na passada Assembleia, foi integrada por uma série de perguntas para conhecer a recepção do documento e para solicitar o seu aprofundamento. Isto constituiu os Lineamenta, que foram enviados aos Sínodos das Igrejas Orientais Católicas sui iuris, às Conferências Episcopais, aos Dicastérios da Cúria Romana e à União dos Superiores-Gerais.

Todo o Povo de Deus foi envolvido no processo de reflexão e aprofundamento, graças também à guia semanal do Santo Padre que, com as suas catequeses sobre a família nas Audiências gerais e em várias outras ocasiões, acompanhou o caminho comum. O renovado interesse pela família, suscitado pelo Sínodo, é confirmado pela ampla atenção a ela dedicada não só por ambientes eclesiais, mas também pela sociedade civil.

Foram recebidas as Respostas dos protagonistas com direito, às quais se juntaram ulteriores contribuições, chamadas Observações, por parte de muitos fiéis (indivíduos, famílias e grupos). Vários componentes das Igrejas particulares, organizações, agregações laicais e outros organismos eclesiais ofereceram importantes sugestões. Universidades, instituições académicas, centros de pesquisa e estudiosos individualmente enriqueceram – e continuam a fazê-lo – o aprofundamento das temáticas sinodais com as suas Contribuições – através de simpósios, congressos e publicações – pondo também em realce aspectos novos, segundo quanto pedido no «questionário prévio» dos Lineamenta.

O presente Instrumentum Laboris compõe-se do texto definitivo da Relatio Synodi integrado pela síntese das Respostas, das Observações e das Contribuições de estudo. Para facilitar a leitura, recorda-se que a numeração contém quer o texto da Relatio quer as integrações. O texto original da Relatio pode ser reconhecido pelo número entre parênteses e pelos caracteres em itálico.

O documento desenvolve-se em três partes, que mostram a continuidade entre as duas Assembleias: A escuta dos desafios sobre a família (I parte) evoca mais directamente o primeiro momento sinodal; O discernimento da vocação familiar (II parte) e A missão da família hoje (III parte) introduzem o tema do segundo momento, com o propósito de oferecer à Igreja e ao mundo contemporâneo estímulos pastorais para uma evangelização renovada.

Lorenzo Card. Baldisseri
Secretário-Geral do Sínodo dos Bispos

Vaticano, 23 de Junho de 2015.

 

 

INTRODUÇÃO

1. (1) O Sínodo dos Bispos congregado ao redor do Papa dirige o seu pensamento a todas as famílias do mundo, com as suas alegrias, as suas dificuldades e as suas esperanças. De modo particular, sente o dever de dar graças ao Senhor pela fidelidade generosa com a qual tantas famílias cristãs respondem à sua vocação e missão. E fazem-no com alegria e com fé, mesmo quando o caminho familiar as coloca perante obstáculos, incompreensões e sofrimentos. A estas famílias dirigem-se o apreço, o agradecimento e o encorajamento da Igreja inteira e deste Sínodo. Na vigília de oração celebrada na Praça de São Pedro no sábado 4 de outubro de 2014, em preparação para o Sínodo sobre a família, o Papa Francisco evocou de maneira simples e concreta a centralidade da experiência familiar na vida de todos, expressando-se com estas palavras: «Desce já a noite sobre a nossa assembleia. É a hora em que de bom grado se regressa a casa para se reunir à mesma mesa na consistência dos afetos, do bem feito e recebido, dos encontros que abrasam o coração e o fazem crescer, vinho bom que antecipa, nos dias do homem, a festa sem ocaso. Mas é também a hora mais pesada para quem se vê cara a cara com a própria solidão, no crepúsculo amargo de sonhos e projetos desfeitos. Quantas pessoas arrastam os seus dias ao beco sem saída da resignação, do abandono, ou até do rancor! Em quantas casas faltam o vinho da alegria e, consequentemente, o sabor – a própria sabedoria – da vida! Nesta noite, com a nossa oração, tornemo-nos voz de uns e de outros: uma prece por todos».

2. (2) Ventre de alegrias e de provações, de afetos profundos e de relacionamentos por vezes feridos, a família é verdadeiramente «escola de humanidade»(cf. GS, 52), cuja necessidade é fortemente sentida. Não obstante os numerosos sinais de crise da instituição familiar nos vários contextos da «aldeia global», o desejo de família permanece vivo, de forma especial entre os jovens, motivando a Igreja, perita em humanidade e fiel à sua missão, a anunciar incessantemente e com profunda convicção o «Evangelho da família», que lhe foi confiado mediante a revelação do amor de Deus em Jesus Cristo e ininterruptamente ensinado pelos Padres, pelos Mestres da espiritualidade e pelo Magistério da Igreja. A família adquire para a Igreja uma importância totalmente particular e, no momento em que todos os fiéis são convidados a sair de si mesmos, é necessário que a família volte a descobrir-se como protagonista imprescindível da evangelização. O pensamento dirige-se ao testemunho missionário de numerosas famílias.

3. (3) Sobre a realidade da família, decisiva e preciosa, o Bispo de Roma exortou a meditar o Sínodo dos Bispos na sua Assembleia Geral Extraordinária, que teve lugar em outubro de 2014, para depois aprofundar a reflexão na Assembleia Geral Ordinária, que se realizará em outubro de 2015, bem como durante o ano inteiro que intercorre entre estes dois acontecimentos sinodais. «O próprio convenire in unum à volta do Bispo de Roma já é evento de graça, no qual a colegialidade episcopal se manifesta num caminho de discernimento espiritual e pastoral»: com estas palavras o Papa Francisco descreveu a experiência sinodal, indicando as suas tarefas na dúplice escuta dos sinais de Deus e da história dos homens, e na dupla e única fidelidade que disto deriva.

4. (4) À luz deste mesmo discurso reunimos os resultados das nossas reflexões e dos nossos diálogos nas seguintes três partes: a escuta, para analisar a realidade da família hoje, na complexidade das suas luzes e das suas sombras; o olhar fixo em Cristo, para voltar a considerar com renovados vigor e entusiasmo aquilo que a revelação, transmitida na fé da Igreja, nos diz sobre a beleza, sobre o papel e sobre a dignidade da família; e o confronto à luz do Senhor Jesus, para discernir os caminhos através dos quais renovar a Igreja e a sociedade no seu compromisso em prol da família, fundamentada no matrimónio entre um homem e uma mulher.

5. Conservando o fruto precioso da Assembleia precedente, o novo passo que nos espera começa com a escuta dos desafios sobre a família a fim de dirigir o olhar para a sua vocação e missão na Igreja e no mundo contemporâneo. A família, além de ser solicitada a responder às problemáticas actuais, está sobretudo chamada por Deus a adquirir uma consciência cada vez mais renovada da própria identidade missionária de Igreja doméstica, também ela «em saída». Num mundo muitas vezes marcado por solidão e tristeza, o «Evangelho da família» é deveras uma boa notícia.

I PARTE

A ESCUTA DOS DESAFIOS SOBRE A FAMÍLIA

Capítulo I

A família e o contexto antropológico-cultural

 

O contexto sociocultural

6. (5) Fiéis ao ensinamento de Cristo, olhamos para a realidade da família de hoje em toda a sua complexidade, nas suas luzes e nas suas sombras. Pensamos nos pais, nos avós, nos irmãos e nas irmãs, nos parentes próximos e distantes, bem como no vínculo entre duas famílias que cada matrimónio tece. A mudança antropológico-cultural influencia hoje todos os aspectos da vida e exige uma abordagem analítica e diversificada. Há que sublinhar, antes de tudo, os aspectos positivos: a maior liberdade de expressão e o melhor reconhecimento dos direitos da mulher e das crianças, pelo menos em determinadas regiões. No entanto, por outro lado, é igualmente necessário ter em consideração o perigo crescente representado por um individualismo exasperado que desnatura os vínculos familiares e acaba por considerar cada componente da família como uma ilha, levando a prevalecer, em certos casos, a ideia de um protagonista que se constrói em conformidade com os seus próprios desejos, assumidos como um absoluto. A isto acrescenta-se também a crise da fé, que atingiu numerosos católicos e que muitas vezes está na origem das crises do matrimónio e da família.

A mudança antropológica

7. Na sociedade actual observam-se disposições diferentes. Só uma minoria vive, apoia e propõe o ensinamento da Igreja católica acerca do matrimónio e da família, reconhecendo nele a bondade do projecto criador de Deus. Os matrimónios, religiosos e não, diminuem e o número de separações e de divórcios aumenta.

Propagam-se o reconhecimento da dignidade de cada pessoa, homem, mulher e criança, e a tomada de consciência da importância das diferentes etnias e das minorias; estes últimos aspectos – já difundidos em muitas sociedades, não só ocidentais – estão a consolidar-se em vários outros países.

Constata-se, nos mais diversos contextos culturais, o receio dos jovens de assumir compromissos definitivos, como o de constituir uma família. Mais em geral, observa-se a difusão de um individualismo extremo que põe no centro a satisfação de desejos que não levam à plena realização da pessoa.

O desenvolvimento da sociedade consumista separou sexualidade e procriação. Também esta é uma das causas da crescente diminuição da natalidade. Nalguns contextos ela está ligada à pobreza ou à impossibilidade de cuidar da prole; noutros, à dificuldade de querer assumir responsabilidades e à percepção de que os filhos poderiam limitar a livre expansão de si.

As contradições culturais

8. Não são poucas as contradições culturais que incidem sobre a família. Ela continua a ser imaginada como o porto seguro dos afectos mais íntimos e gratificantes, mas as tensões induzidas por uma exasperada cultura individualista da posse e do gozo geram no seu interior dinâmicas de intolerância e de agressividade às vezes ingovernáveis. Pode-se mencionar também uma certa visão do feminismo, que considera a maternidade um pretexto para a exploração da mulher e um obstáculo para a sua plena realização. Depois, há a tendência crescente a considerar a geração de um filho como um instrumento para a afirmação de si, que deve ser obtida com qualquer meio. Podem-se recordar por fim as teorias segundo as quais a identidade pessoal e a intimidade afectiva devem afirmar-se numa dimensão radicalmente desvinculada da diversidade biológica entre homem e mulher.

Mas, ao mesmo tempo, deseja-se reconhecer à estabilidade de um casal instituído independentemente da diferença sexual, o mesmo título da relação matrimonial intrinsecamente ligada às funções paterna e materna, definidas a partir da biologia da geração. A confusão não ajuda a definir a especificidade social de tais uniões, enquanto confia à opção individualista o vínculo especial entre diferença, geração, identidade humana. É certamente necessário um melhor aprofundamento humano e cultural, não só biológico, da diferença sexual, ciente de que «a remoção da diferença é o problema, não a solução» (Francisco, Audiência geral, 15 de Abril de 2015).

As contradições sociais

9. Eventos traumáticos como os conflitos bélicos, o esgotamento dos recursos, os processos migratórios, incidem de maneira crescente sobre a qualidade afectiva e espiritual da vida familiar e põem em risco as relações no âmbito da família. As suas energias materiais e espirituais são, com muita frequência, levadas ao limiar da dissolução.

Deve-se falar também, em geral, das graves contradições geradas pelo peso de políticas económicas imprudentes, assim como pela insensibilidade de políticas sociais, também nas chamadas sociedades do bem-estar. Em particular, o aumento das despesas para manter os filhos, assim como o enorme agravamento das tarefas subsidiárias do cuidado social dos doentes e dos idosos, de facto delegadas às famílias, constituem um verdadeiro peso que sobrecarrega a vida familiar.

Se se juntarem os efeitos de uma conjuntura económica desfavorável, de natureza bastante ambígua, e o crescente fenómeno do acúmulo de riquezas nas mãos de poucos e do desvio de recursos que deveriam ser destinados ao projecto familiar, o quadro de empobrecimento da família perfila-se ainda mais problemático. A dependência do álcool, das drogas ou do jogo de azar é por vezes expressão destas contradições sociais e do mal-estar a que elas dão origem na vida das famílias.

Fragilidade e força da família

10. A família, comunidade humana fundamental, nunca mostrou como hoje, precisamente através da sua crise cultural e social, quantos sofrimentos causam a sua debilitação e a sua fragilidade. E quanta força ela pode encontrar, em si mesma, para fazer face à insuficiência e à inacção das instituições em relação à formação da pessoa, à qualidade do vínculo social, ao cuidado das pessoas mais vulneráveis. Portanto, é particularmente necessário apreciar de modo adequado a força da família, a fim de poder apoiar as suas fragilidades.

Capítulo II

A família e o contexto socioeconómico

A família recurso insubstituível da sociedade

11. A família permanece ainda hoje, e permanecerá sempre, o pilar fundamental e irrenunciável do viver social. Com efeito, nela convivem múltiplas diferenças, através das quais se estreitam relações, se cresce no confronto e no acolhimento recíproco das gerações. A família representa, precisamente assim, um valor fundamental e um recurso insubstituível para o desenvolvimento harmonioso de qualquer sociedade humana, segundo quanto afirma o Concílio: «A família é a escola de humanidade mais rica [...] é o fundamento da sociedade» (GS, 52). Nas relações familiares, conjugais, filiais e fraternas todos os membros da família estabelecem vínculos sólidos e gratuitos, na concórdia e no respeito recíproco, que permitem superar os riscos do isolamento e da solidão.

Políticas a favor da família

12. Ressalta-se que, sendo a família protagonista da edificação da cidade comum e não uma realidade particular, são necessárias políticas familiares adequadas, que a apoiem e promovam. Além disso, sugere-se que se considere a relação entre welfare e acção compensativa da família. No respeitante a políticas familiares e a sistemas de welfare inadequados, essa acção compensativa redistribui recursos e tarefas para o bem comum, contribuindo para reequilibrar os efeitos negativos da desigualdade social.

O desafio da solidão e da precariedade

13. (6) Uma das maiores formas de pobreza da cultura contemporânea é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade dos relacionamentos. Existe também uma sensação generalizada de impotência em relação à realidade socioeconómica, que frequentemente acaba por esmagar as famílias. É assim devido às crescentes pobreza e precariedade de trabalho, que por vezes são vividas como um verdadeiro pesadelo, ou por causa de uma fiscalidade demasiado pesada, que certamente não encoraja os jovens ao matrimónio. As famílias sentem-se não raro abandonadas pelo desinteresse e pela escassa atenção por parte das instituições. As consequências negativas do ponto de vista da organização social são evidentes: da crise demográfica aos obstáculos educativos, da dificuldade de aceitar a vida nascente ao sentir a presença dos idosos como um peso, até ao propagar-se de um mal-estar afetivo que às vezes chega à violência. O Estado tem a responsabilidade de criar as condições legislativas e de trabalho para garantir o porvir dos jovens e para os ajudar a realizar o seu projeto de fundar uma família.

O desafio económico

14. A vida familiar concreta está estreitamente ligada à realidade económica. Muitos observam que, nos nossos dias, a família pode sofrer facilmente devido a numerosas formas de vulnerabilidade. Do ponto de vista da economia os problemas mais relevantes são os que se relacionam com salários insuficientes, desemprego, insegurança económica, falta de um trabalho digno e de segurança no posto de trabalho, tráfico de pessoas humanas e escravidão.

Reflecte-se de modo particularmente agudo na família o efeito da injustiça económica, que o impede de crescer: falta uma casa própria; não se geram filhos; os que nasceram têm dificuldade de estudar e de se tornar independentes; permanece excluída a projecção serena do futuro. Para resolver esta situação é necessária uma mudança estrutural de perspectiva por parte de toda a sociedade, como nos recorda o Papa: «O crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento económico, embora o pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição das receitas, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo» (EG, 204). Uma renovada solidariedade intergeracional começa pela atenção aos pobres do presente, ainda antes do que aos do futuro, prestando atenção especial às necessidades das famílias.

O desafio da pobreza e a exclusão social

15. Um desafio de particular relevância é representado pelos grupos sociais, por vezes muito numerosos, caracterizados por situações de pobreza, não só económica mas com frequência também cultural, a tal ponto que impedem a realização de um projecto de vida familiar adequado à dignidade da pessoa. É preciso reconhecer também que, não obstante as enormes dificuldades, muitas famílias pobres procuram levar dignamente a sua vida diária, confiando em Deus, que não desilude nem abandona.

Relevou-se também que o sistema económico actual produz diversas formas de exclusão social. São várias as categorias de pessoas que se sentem excluídas. Uma característica comum é que muitas vezes os «excluídos» são «invisíveis» aos olhos da sociedade. A cultura predominante, os meios de comunicação, as maiores instituições muitas vezes contribuem para manter – ou até agravar – esta «invisibilidade» sistemática. A este propósito, o Papa Francisco questiona-se: «[…] por que nos habituamos a ver como se destrói o trabalho digno, se despejam tantas famílias, se afastam os camponeses, se faz guerra e se abusa da natureza?». E responde: «Porque neste sistema o homem, a pessoa humana foi deslocada do centro e substituída por outra coisa. Porque se presta um culto idolátrico ao dinheiro. Porque se globalizou a indiferença!» (Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos populares, 28 de Outubro de 2014).

A exclusão social enfraquece a família e torna-se uma ameaça séria à dignidade dos seus membros. É particularmente preocupante a condição dos filhos, os quais é como se fossem a priori punidos por causa da exclusão e, muitas vezes, ficam tragicamente marcados para a vida inteira, devido a privações e sofrimentos. Trata-se de verdadeiros «órfãos sociais».

O desafio ecológico

16. Do ponto de vista da ecologia, os problemas relevantes derivam do acesso insuficiente à água por parte de muitas populações, degradação ambiental, fome e subalimentação, terrenos não cultivados ou devastados, cultura do «descartável». As situações descritas incidem, com frequência em grande medida, sobre as dinâmicas da vida familiar e sobre a sua serenidade.

Por estas razões, também graças ao impulso do Papa Francisco, a Igreja deseja e colabora para uma profunda reconsideração da orientação do sistema mundial, através de uma cultura ecológica capaz de elaborar um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade. Dado que tudo está intimamente relacionado, é necessário aprofundar os aspectos de uma «ecologia integral» que inclua não só as dimensões ambientais, mas também humanas, sociais e económicas, para o desenvolvimento sustentável e a salvaguarda da criação.

Capítulo III

Família e inclusão

A terceira idade

17. Muitos frisam a condição das pessoas idosas no âmbito das famílias. Nas sociedades evoluídas o número dos anciãos tende a aumentar, enquanto diminui a natalidade. O recurso que eles representam nem sempre é adequadamente apreciado. Como recordou o Papa Francisco: «O número de idosos multiplicou-se, mas as nossas sociedades não se organizaram suficientemente para lhes deixar espaço, com o justo respeito e a concreta consideração pela sua fragilidade e dignidade. Enquanto somos jovens, somos levados a ignorar a velhice, como se fosse uma enfermidade da qual nos devemos manter à distância; depois, quando envelhecemos, especialmente se somos pobres, doentes e sós, experimentamos as lacunas de uma sociedade programada sobre a eficácia que, consequentemente, ignora os idosos. Mas os idosos são uma riqueza, não podem ser ignorados!» (Audiência geral, 4 de Março de 2015).

18. A condição dos avós em família exige uma atenção peculiar. Eles constituem o elo de união entre as gerações, garantindo a transmissão de tradições e hábitos nos quais os mais jovens podem encontrar as próprias raízes. Além disso, muitas vezes de modo discreto e gratuito, garantem um precioso apoio económico aos jovens casais e ocupam-se dos netos, transmitindo-lhes também a fé. Muitas pessoas, de modo especial nos nossos dias, podem reconhecer que devem precisamente aos avós a sua iniciação na vida cristã. Isto testemunha como no âmbito da família, com o suceder-se das gerações, a fé se comunica e se conserva, tornando-se uma herança insubstituível para os novos núcleos familiares. Por isso, aos idosos é devido um tributo sincero de reconhecimento, de apreço e de hospitalidade, por parte dos jovens, das famílias e da sociedade.

O desafio da viuvez

19. A viuvez é uma experiência particularmente difícil para quem viveu a escolha matrimonial e a vida familiar como dom do Senhor. Contudo, ela apresenta ao olhar da fé também algumas possibilidades que devem ser valorizadas. Assim, por exemplo, no momento em que se encontram a viver esta experiência dolorosa, alguns demonstram que sabem canalizar as próprias energias ainda com maior dedicação aos filhos e netos, encontrando nesta experiência de amor uma nova missão educativa. O vazio deixado pelo cônjuge falecido, num certo sentido, é preenchido pelo afecto dos familiares que valorizam as pessoas viúvas, permitindo assim que preservem também a memória preciosa do próprio matrimónio. Em contrapartida, quantos não podem contar com a presença de familiares aos quais dedicar-se e dos quais receber afecto e proximidade, devem ser apoiados pela comunidade cristã com atenção e disponibilidade particulares, sobretudo quando se encontram em condições de indigência.

A última fase da vida e o luto em família

20. As pessoas idosas estão cientes de que se encontram na última fase da existência. A sua condição repercute-se sobre toda a vida familiar. O confronto com a doença, que com frequência acompanha o prolongar-se da velhice, e sobretudo o confronto com a morte, que sentem próxima e experimentada com a perda das pessoas mais queridas (o cônjuge, os familiares, os amigos), constituem os aspectos críticos desta idade, que expõem a pessoa e a família inteira à redefinição do próprio equilíbrio.

A valorização da fase conclusiva da vida é hoje tanto mais necessária quanto mais, pelo menos nos países ricos, se procura remover de todas as formas o momento da morte. Face a uma visão negativa deste período – que considera só os aspectos de declínio e progressiva perda de capacidades, autonomias e afectos – podem-se enfrentar os últimos anos valorizando o sentido do cumprimento e da integração de toda a existência. Torna-se possível também descobrir uma nova declinação generativa na entrega de uma herança sobretudo moral às novas gerações. A dimensão da espiritualidade e da transcendência, juntamente com a proximidade dos membros da família, constituem recursos essenciais para que também a velhice esteja imbuída de um sentido de dignidade e esperança.

Depois, as famílias provadas pela experiência do luto requerem cuidados particulares. Quando a perda diz respeito aos mais pequeninos e aos jovens, o impacto sobre a família é particularmente dilacerante.

O desafio da deficiência

21. É preciso dedicar uma atenção especial às famílias das pessoas com deficiência, cujo impedimento, que irrompe repentinamente na vida, gera um desafio, profundo e inesperado, e altera os equilíbrios, os desejos, as expectativas. Isto determina emoções contrastantes que devem ser geridas e elaboradas, e impõe tarefas, urgências e necessidades novas, funções e responsabilidades diferentes. A imagem familiar e todo o seu ciclo vital são profundamente perturbados. Contudo, a família poderá descobrir, juntamente com a comunidade cristã à qual pertence, diversas habilidades, competências imprevistas, novos gestos e linguagens, formas de compreensão e de identidade, no longo e difícil caminho de acolhimento e atenção ao mistério da fragilidade.

22. Este processo, em si extraordinariamente complexo, torna-se ainda mais difícil nas sociedades em que sobrevivem formas impiedosas de estigma e de preconceito, que impedem o encontro fecundo com a deficiência e o emergir da solidariedade e do acompanhamento comunitário. Um encontro que na realidade pode constituir, para cada um e para a comunidade inteira, uma ocasião preciosa de crescimento na justiça, no amor e na defesa do valor de cada vida humana, a partir do reconhecimento de um profundo sentido de comunhão na vulnerabilidade. É desejável que, numa comunidade realmente acolhedora, a família e a pessoa com necessidades especiais não se sintam sozinhas e descartadas, mas tenham a oportunidade de encontrar alívio e apoio, sobretudo quando vêm a faltar energias e recursos familiares.

23. A este propósito, deve ser considerado o desafio chamado do «depois de nós»: pensemos nas situações familiares de pobreza e solidão, ou no recente fenómeno segundo o qual, nas sociedades economicamente mais progredidas, o aumento da expectativa de vida permitirá que as pessoas com deficiência sobrevivam, com grande probabilidade, aos seus pais. Se a família consegue aceitar com o olhar da fé a presença no seu seio de pessoas deficientes, ela poderá ajudá-las também a não viver o seu impedimento unicamente como um limite e a reconhecer o seu valor diferente e original. Deste modo, poderá ser garantida, defendida e valorizada a qualidade possível de cada vida, individual e familiar, com as suas necessidades, com o seu direito a iguais dignidade e oportunidades, a serviços e curas, a companhia e afectividade, a espiritualidade, beleza e plenitude de sentido, em todas as fases da vida, desde a concepção até ao envelhecimento e fim natural.

O desafio das migrações

24. Em muitos causa preocupação o efeito que tem sobre a família o fenómeno migratório que, de modalidades diversas, diz respeito a populações inteiras em várias partes do mundo. O acompanhamento dos migrantes requer uma pastoral específica, destinada às famílias em migração, mas também aos membros dos núcleos familiares que permaneceram nos lugares de origem; isto deve ser realizado no respeito pelas suas culturas, pela formação religiosa e humana das quais provêm. Hoje o fenómeno migratório causa feridas trágicas a massas de indivíduos e famílias em «excesso», em diversas populações e territórios, que legitimamente procuram um futuro melhor, um «novo nascimento», caso não seja possível viver lá onde nasceram.

25. As várias situações de guerra, perseguição, pobreza, desigualdade, normalmente motivo da migração, juntamente com as peripécias de uma viagem que muitas vezes põe em perigo a própria vida, marcam traumaticamente os indivíduos e os seus sistemas familiares. Com efeito, no processo migratório as famílias dos migrantes encontram-se inevitavelmente dilaceradas por múltiplas experiências de abandono e divisão: em muitos casos o corpo familiar é dramaticamente desmembrado entre quem parte para abrir o caminho e quem permanece, à espera de um regresso ou de voltar a reunir-se. Quantos partem vêem-se distantes da própria terra e cultura, da sua língua, dos vínculos com a família alargada e com a comunidade, do passado e do andamento tradicional do próprio percurso de vida.

26. O encontro com um novo país e com uma nova cultura torna-se muito mais difícil quando não existem condições de acolhimento e aceitação autênticos, no respeito pelos direitos de todos e por uma convivência pacífica e solidária. O sentido de desorientação, as saudades das origens perdidas e as dificuldades de uma integração autêntica – que passa através da criação de novos vínculos e da projecção de uma vida que conjugue passado e presente, culturas e geografias, línguas e mentalidades diversas – mostram hoje, em muitos contextos, que isto ainda não foi superado e revelam sofrimentos novos também na segunda e terceira geração de famílias migrantes, alimentando fenómenos de fundamentalismo e de rejeição violenta da cultura que hospeda.

Revela-se um recurso precioso para a superação destas dificuldades precisamente o encontro entre famílias, e muitas vezes são as mães que desempenham um papel-chave nos processos de integração, através da partilha da experiência de crescimento dos próprios filhos.

27. Depois, as experiências migratórias resultam ser particularmente dramáticas e devastadoras, para as famílias e para cada indivíduo, quando se realizam fora da legalidade, quando são alimentadas pelos circuitos internacionais do tráfico de seres humanos, quando atingem crianças não acompanhadas, quando obrigam a paragens prolongadas em lugares intermédios entre um país e outro, entre o passado e o futuro, e a permanências em campos de refugiados ou centros de acolhimento, nos quais não é possível dar início a um percurso de radicação nem traçar um futuro novo.

Alguns desafios peculiares

28. (7) Existem contextos culturais e religiosos que apresentam desafios particulares. Em determinadas sociedades ainda vigora a prática da poligamia e, em certos contextos tradicionais, o hábito do «matrimónio por etapas». Noutros âmbitos subsiste a prática dos matrimónios arranjados. Nos países onde a presença da Igreja católica é minoritária são numerosos os matrimónios mistos e de disparidade de culto, com todas as dificuldades que eles comportam em relação à configuração jurídica, ao batismo e à educação dos filhos, bem como ao respeito recíproco sob o ponto de vista da diversidade da fé. Em tais matrimónios pode apresentar-se o perigo do relativismo ou da indiferença, mas pode haver também a possibilidade de favorecer o espírito ecuménico e o diálogo inter-religioso, numa convivência harmoniosa de comunidades que vivem num mesmo lugar. Em numerosos contextos, e não apenas ocidentais, vai-se difundindo amplamente a prática da convivência que precede o matrimónio ou até de convivências não destinadas a assumir a forma de vínculo institucional. A isto acrescenta-se uma legislação civil que compromete o matrimónio e a família. Por causa da secularização, em muitas partes do mundo a referência a Deus diminuiu fortemente, e a fé já não é compartilhada a nível social.

A família e as crianças

29. (8) Numerosas crianças nascem fora do matrimónio, especialmente em certos países, e são muitos aquelas que, em seguida, crescem apenas com um dos pais, ou num contexto familiar ampliado ou reconstituído. O número de divórcios aumenta, e não é raro o caso de escolhas determinadas unicamente por fatores de ordem económica. Os filhos são muitas vezes objeto de contenda entre os pais, e os primeiros são as verdadeiras vítimas das separações familiares. O pai está com frequência ausente, não apenas por motivos económicos, onde ao contrário se sente a necessidade de que ele assuma mais claramente a responsabilidade pelos filhos e pela família. A dignidade da mulher ainda tem necessidade de ser defendida e promovida. Com efeito, hoje em muitos contextos ser mulher continua a constituir objeto de discriminação, e até o dom da maternidade é frequentemente penalizado, em vez de ser apresentado como um valor. Também não podemos esquecer os crescentes fenómenos de violência, da qual as mulheres são vítimas por vezes infelizmente até no seio das próprias famílias, e a grave e difundida mutilação genital da mulher em determinadas culturas. Além disso, a exploração sexual da infância constitui uma das realidades mais escandalosas e perversas da sociedade contemporânea. Inclusive as sociedades permeadas pela violência por causa da guerra, do terrorismo ou da presença da criminalidade organizada, vivem situações familiares deterioradas e, principalmente nas grandes metrópoles e nas suas periferias, aumenta o chamado fenómeno das crianças de rua. Além disso, as migrações representam outro sinal dos tempos que deve ser enfrentado e compreendido com toda a sua carga de consequências para a vida familiar.

O papel das mulheres

30. De várias partes chegou a observação de que os processos de emancipação da mulher evidenciaram bem o seu papel determinante no crescimento da família e da sociedade. Mas permanece uma realidade que a condição feminina no mundo está sujeita a grandes diferenças que derivam principalmente de factores culturais. Não se pode pensar que situações problemáticas possam ser resolvidas simplesmente com o fim da emergência económica e com o advento de uma cultura moderna, como demonstram as difíceis condições das mulheres em diversos países de recente desenvolvimento.

Nos países ocidentais a emancipação feminina exige uma reconsideração das tarefas dos cônjuges na sua reciprocidade e na comum responsabilidade em relação à vida familiar. Nos países em vias de desenvolvimento, à exploração e à violência exercidas sobre o corpo das mulheres e à fadiga que lhes é imposta também durante a gravidez, muitas vezes acrescentam-se abortos e esterilizações forçadas, assim como as consequências extremamente negativas de práticas relacionadas com a procriação (por exemplo, alugar o útero ou mercadejar gâmetas embrionários). Nos países progredidos, o desejo do filho «a qualquer preço» não levou a relações familiares mais felizes e sólidas, mas em muitos casos agravou de facto a desigualdade entre mulheres e homens. A esterilidade da mulher representa, segundo preconceitos presentes em diversas culturas, uma condição socialmente discriminante.

Pode contribuir para o reconhecimento do papel determinante das mulheres uma maior valorização da sua responsabilidade na Igreja: a sua intervenção nos processos decisórios, a sua participação, não só formal, no governo de algumas instituições; o seu compromisso na formação dos ministros ordenados.

Capítulo IV

Família, afectividade e vida

A relevância da vida afectiva

31. (9) Perante o quadro social delineado encontra-se em muitas partes do mundo, nos solteiros, uma maior necessidade de cuidar da própria pessoa, de se conhecer interiormente, de viver mais em sintonia com as próprias emoções e com os próprios sentimentos, de procurar relacionamentos afetivos de qualidade; esta justa aspiração pode abrir ao desejo de se comprometer na construção de relacionamentos de doação e reciprocidade criativos, responsabilizadores e solidários, como os familiares. São relevantes o perigo individualista e o risco de viver em chave egoísta. Para a Igreja, o desafio consiste em ajudar os casais no amadurecimento da dimensão emocional e no desenvolvimento afetivo, através da promoção do diálogo, da virtude e da confiança no amor misericordioso de Deus. O pleno compromisso exigido no matrimónio cristão pode constituir um forte antídoto contra a tentação de um individualismo egoísta.

A formação da afectividade

32. É pedido que as famílias se sintam directamente responsáveis pela formação afectiva das jovens gerações. A velocidade com a qual se verificam as mudanças da sociedade contemporânea torna mais difícil o acompanhamento na formação da afectividade para a maturação da pessoa inteira. Ele exige também agentes pastorais que sejam formados de maneira apropriada, não só com um conhecimento aprofundado da Escritura e da doutrina católica, mas também dotados de instrumentos pedagógicos, psicológicos e médicos adequados. Um conhecimento da psicologia da família servirá de ajuda para que a visão cristã seja transmitida de modo eficaz: este esforço educativo deve começar já com as catequeses da iniciação cristã.

Fragilidade e imaturidade afectivas

33. (10) No mundo contemporâneo não faltam tendências culturais que parecem impor uma afetividade ilimitada, da qual se deseja explorar todas as vertentes, até as mais complexas. Com efeito, a questão da fragilidade afetiva é de grande atualidade: uma afetividade narcisista, instável e mutável nem sempre ajuda os protagonistas a alcançar uma maior maturidade. Preocupa uma certa difusão da pornografia e da comercialização do corpo, favorecida inclusive por um uso deturpado da internet, enquanto deve ser denunciada a situação daquelas pessoas que são obrigadas a praticar a prostituição. Neste contexto, os casais sentem-se às vezes incertos, hesitantes e têm dificuldade de encontrar modos para crescer. São muitos aqueles que tendem a permanecer nas fases primárias da vida emocional e sexual. A crise do casal desestabiliza a família e, através das separações e dos divórcios, pode chegar a provocar sérias consequências sobre os adultos, os filhos e a sociedade, debilitando o indivíduo e os vínculos sociais. Também a diminuição demográfica, devida a uma mentalidade antinatalista e promovida pelas políticas mundiais de saúde reprodutiva, não apenas determina uma situação em que não é mais assegurado o revezamento das gerações, mas também corre o risco de levar, ao longo do tempo, a um empobrecimento económico e a uma perda de esperança no futuro. Inclusive o desenvolvimento das biotecnologias teve um forte impacto sobre a natalidade.

O desafio bioético

34. De várias partes é feita a observação de que a chamada revolução biotecnológica no campo da procriação humana introduziu a possibilidade técnica de manipular o acto generativo, tornando-o independente da relação sexual entre homem e mulher. Deste modo, a vida humana e a genitorialidade tornaram-se realidades componíveis e decomponíveis, em predominância sujeitas aos desejos de um indivíduo ou de casais, não necessariamente heterossexuais nem casados de modo regular. Este fenómeno apresentou-se nos últimos tempos como uma novidade absoluta no cenário da humanidade, e está a difundir-se cada vez mais. Tudo isto tem profundas repercussões na dinâmica das relações, na estrutura da vida social e nos ordenamentos jurídicos, que intervêm para procurar regulamentar práticas já em acto e situações diferenciadas.

O desafio para a pastoral

35. (11)Neste contexto, a Igreja sente a necessidade de dizer uma palavra de verdade e de esperança. É preciso partir da convicção de que o homem provém de Deus e, por conseguinte, de que uma reflexão capaz de voltar a propor as grandes interrogações sobre o significado do ser homem pode encontrar um terreno fértil nas expectativas mais profundas da humanidade. Os grandes valores do matrimónio e da família cristã correspondem à investigação que atravessa a existência humana, inclusive numa época caracterizada pelo individualismo e pelo hedonismo. É necessário acolher as pessoas com a sua existência concreta, saber fomentar a sua busca, encorajar o seu desejo de Deus e a sua vontade de se sentir plenamente parte da Igreja, até mesmo em quantos experimentaram a falência ou vivem as situações mais diferentes. A mensagem cristã contém sempre em si mesma a realidade e a dinâmica da misericórdia e da verdade, que convergem em Cristo.

36. Na formação para a vida conjugal e familiar, os agentes pastorais deverão ter em consideração a pluralidade das situações concretas. Se, por um lado, é preciso promover realidades que garantam a formação dos jovens para o matrimónio, por outro, é necessário acompanhar quantos vivem sem constituir um novo núcleo familiar, permanecendo com frequência ligados à família de origem. Também os casais que não podem ter filhos devem ser objecto de uma atenção pastoral especial por parte da Igreja, que os ajude a descobrir o desígnio de Deus sobre a sua situação, ao serviço da comunidade inteira.

Há uma ampla solicitação de que seja esclarecido que com a categoria de «distantes» não deve ser entendida uma realidade de excluídos ou de afastados: trata-se de pessoas amadas por Deus e pelas quais a acção pastoral da Igreja se preocupa. Deve-se adquirir um olhar de compreensão em relação a todos, tendo em consideração que as situações de distância da vida eclesial nem sempre são desejadas, frequentemente são induzidas e às vezes são até suportadas por causa de comportamentos de terceiros.

II PARTE

O DISCERNIMENTO DA VOCAÇÃO FAMILIAR

Capítulo I

Família e pedagogia divina

O olhar sobre Jesus e a pedagogia divina na história da salvação

37. (12) A fim de «verificar o nosso passo no terreno dos desafios contemporâneos, a condição decisiva é manter o olhar fixo em Jesus Cristo, deter-nos na contemplação e adoração do seu rosto [...]. Na verdade, todas as vezes que voltamos à fonte da experiência cristã, abrem-se estradas novas e possibilidades inimagináveis» (Papa Francisco, Discurso por ocasião da Vigília de oração em preparação para o Sínodo sobre a família, 4 de outubro de 2014). Jesus olhava com amor e ternura para as mulheres e para os homens com os quais se encontrava, acompanhando os seus passos com verdade, paciência e misericórdia, anunciando as exigências do Reino de Deus.

A Palavra de Deus em família

38. Dirigir o olhar para Cristo significa antes de tudo pôr-se à escuta da sua Palavra: a leitura da Sagrada Escritura, não só nas comunidades, mas também nas casas, permite realçar a centralidade do casal e da família no projecto de Deus, e leva a reconhecer como Deus entra concretamente na vida familiar, tornando-a mais bela e vital.

Não obstante as diversas iniciativas, nas famílias católicas ainda se verifica a falta de um contacto mais directo com a Bíblia. Na pastoral da família deve ser sempre evidenciado o valor central do encontro com Cristo, que naturalmente sobressai quando se está radicado na Sagrada Escritura. Assim deseja-se sobretudo que nas famílias seja encorajada uma relação vital com a Palavra de Deus, de modo a orientar para um verdadeiro encontro pessoal com Jesus Cristo. Como modalidade de abordagem da Escritura aconselha-se a «lectio divina», que representa uma leitura orante da Palavra de Deus e uma fonte de inspiração para o agir diário.

A pedagogia divina

39. (13) Uma vez que a ordem da criação é determinada pela orientação para Cristo, é necessário distinguir sem separar os vários graus mediante os quais Deus comunica à humanidade a graça da aliança. Em virtude da pedagogia divina, em conformidade com a qual a ordem da criação evolui na da redenção através de etapas sucessivas, é preciso compreender a novidade do sacramento nupcial cristão, em continuidade com o matrimónio natural das origens. É assim que se entende o modo de agir salvífico de Deus, tanto na criação como na vida cristã. Na criação: dado que tudo foi feito através de Cristo e para Cristo (cf. Cl 1, 16), os cristãos «fazem vir à luz, com alegria e respeito, as sementes do Verbo adormecidas; mas atendem, ao mesmo tempo, à transformação profunda que se realiza entre os povos» (AG, 11). Na vida cristã: enquanto, mediante o batismo, o crente está inserido na Igreja através da Igreja doméstica que é a sua família, ele empreende aquele «processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus» (FC, 9), mediante a conversão contínua ao amor que salva do pecado e confere plenitude de vida.

Matrimónio natural e plenitude sacramental

40. Tendo presente que as realidades naturais devem ser entendidas à luz da graça, não se pode esquecer que a ordem da redenção ilumina e cumpre a ordem da criação. Por conseguinte, o matrimónio natural compreende-se plenamente à luz do seu cumprimento sacramental; só fixando o olhar em Cristo se conhece profundamente a verdade das relações humanas. «Na realidade, o mistério do homem só se esclarece verdadeiramenteno mistério do Verbo encarnado […] Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime» (GS, 22). Nesta perspectiva, é particularmente oportuno compreender em chave cristocêntrica as propriedades naturais do matrimónio, que são ricas e múltiplas.

Jesus e a família

41. (14) O próprio Jesus, referindo-se ao desígnio primordial sobre o casal humano, confirma a união indissolúvel entre o homem e a mulher, não obstante diga: «Por causa da dureza do vosso coração, Moisés tinha tolerado o repúdio das mulheres; mas no princípio não era assim» (Mt 19, 8). A indissolubilidade do matrimónio («Portanto, não separe o homem o que Deus uniu» Mt 19, 6), não deve ser entendida antes de tudo como um «jugo» imposto aos homens, mas sim como um «dom» oferecido às pessoas unidas em matrimónio. Deste modo, Jesus demonstra que a condescendência divina acompanha sempre o caminho humano, purifica e transforma com a sua graça o coração endurecido, orientando-o para o seu princípio, através do caminho da cruz. Dos Evangelhos sobressai claramente o exemplo de Jesus, que é paradigmático para a Igreja. Com efeito, Jesus assumiu uma família, deu início aos prodígios na festa nupcial em Caná e anunciou a mensagem relativa ao significado do matrimónio como plenitude da revelação que resgata o desígnio originário de Deus (cf. Mt 19, 3). Contudo, ao mesmo tempo, pôs em prática a doutrina ensinada, manifestando deste modo o verdadeiro significado da misericórdia. Isto aparece claramente nos encontros com a samaritana (cf. Jo 4, 1-30) e com a adúltera (cf. Jo 8, 1-11) nos quais Jesus, mediante uma atitude de amor pela pessoa pecadora, leva ao arrependimento e à conversão («vai e não voltes a pecar!»), condição para o perdão.

A indissolubilidade dom e tarefa

42. O testemunho de casais que vivem plenamente o matrimónio cristão ressalta o valor desta união indissolúvel e suscita o desejo de empreender sempre novos caminhos de fidelidade conjugal. A indissolubilidade representa a resposta do homem ao profundo desejo de amor recíproco e duradouro: um amor «para sempre» que se torna opção e doação pessoal de cada um dos cônjuges entre si, do casal em relação ao próprio Deus e a quantos Ele lhes confia. Nesta perspectiva é importante celebrar os aniversários de matrimónio na comunidade cristã, para recordar que em Cristo é possível e bom viver juntos e para sempre.

O Evangelho da família oferece um ideal de vida que deve ter em consideração a sensibilidade do nosso tempo e as dificuldades concretas de respeitar os compromissos para sempre. Sobre este aspecto é necessário um anúncio que dê esperança e não esmague: todas as famílias saibam que a Igreja nunca as abandona, em virtude do «vínculo indissolúvel da história de Cristo e da Igreja com a história do matrimónio e da família humana» (Francisco, Audiência geral, 6 de Maio de 2015).

O estilo da vida familiar

43. De várias partes chega o convite a promover uma moral da graça que faça descobrir e florescer a beleza das virtudes próprias da vida matrimonial, entre as quais: respeito e confiança recíprocos, acolhimento e gratidão mútuos, paciência e perdão. Na porta de entrada da vida da família, afirma o Papa Francisco, «estão escritas três palavras […] “com licença?”, “obrigado”, “desculpa”. Estas palavras realmente abrem o caminho para viver bem na família, para viver em paz. Trata-se de palavras simples, mas não tão fáceis de pôr em prática! Elas encerram em si uma grande força: o vigor de proteger o lar, até no meio de inúmeras dificuldades e provações; ao contrário, a sua falta gradualmente abre fendas que até o podem fazer ruir» (Francisco, Audiência geral, 13 de Maio de 2015). Em síntese, o sacramento do matrimónio abre um dinamismo que inclui e sustém os tempos e as provas do amor, que exigem uma maturação gradual alimentada pela graça.

A família no desígnio salvífico de Deus

44. (15) As palavras de vida terna que Jesus transmitiu aos seus discípulos compreendiam o ensinamento sobre o matrimónio e a família. Este ensinamento de Jesus permite-nos distinguir em três etapas fundamentais o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família. No princípio existia a família das origens, quando Deus criador instituiu o matrimónio primordial entre Adão e Eva, como fundamento sólido da família. Deus não apenas criou o ser humano, varão e mulher os criou (cf. Gn 1, 27), mas também os abençoou a fim de que fossem fecundos e para que se multiplicassem (cf. Gn 1, 28). Por isso, «o homem deixará o seu pai e a sua mãe para se unir à sua mulher; e já serão uma só carne» (Gn 2, 24). Esta união foi danificada pelo pecado, tornando-se a forma histórica de matrimónio no Povo de Deus, ao qual Moisés concedeu a possibilidade de conferir um certificado de divórcio (cf. Dt 24, 1 ss.). Esta forma era predominante na época de Jesus. Com o seu advento e com a reconciliação do mundo decaído, graças à redenção por Ele realizada, concluiu-se a era inaugurada por Moisés.

União e fecundidade dos cônjuges

45. Reafirmou-se que a valorização do ensinamento contido na Sagrada Escritura poderá servir de ajuda para mostrar como, desde o Génesis, Deus imprimiu no casal a própria imagem e semelhança. Nesta linha, o Papa Francisco recordou que «não apenas o homem em si mesmo é imagem de Deus, não só a mulher em si mesma é imagem de Deus, mas também o homem e a mulher, como casal, são imagem de Deus. A diferença entre homem e mulher não é para a contraposição, nem para a subordinação, mas para a comunhão e a geração, sempre à imagem e semelhança de Deus» (Audiência geral, 15 de Abril de 2015). Alguns evidenciam que no desígnio criador está inscrita a complementaridade do carácter unitivo do matrimónio com o procriador; o unitivo, fruto de um livre consenso consciente e meditado, predispõe para a actuação do procriador. Além disso, a acção geradora deve ser compreendida na perspectiva da procriação responsável e, a nível de projecto, do compromisso de cuidar dos filhos com fidelidade.

A família imagem da Trindade

46. (16) Jesus, que reconciliou tudo em si mesmo, restituiu o matrimónio e a família à sua forma original (cf. Mc 10, 1-12). A família e o matrimónio foram redimidos por Cristo (cf. Ef 5, 21-32), restaurados à imagem da Santíssima Trindade, mistério do qual brota todo o amor autêntico. A aliança esponsal, inaugurada na criação e revelada na história da salvação, recebe a plena revelação do seu significado em Cristo e na sua Igreja. De Cristo, através da Igreja, o matrimónio e a família recebem a graça necessária para dar testemunho do amor de Deus e para levar uma vida de comunhão. O Evangelho da família atravessa a história do mundo, desde a criação do homem à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-27) até ao cumprimento do mistério da Aliança em Cristo no fim dos séculos, com as núpcias do Cordeiro (cf. Ap 19, 9; João Paulo II, Catequeses sobre o amor humano).

Capítulo II

Família e vida da Igreja

A família nos documentos da Igreja

47. (17) «Com o decorrer dos séculos, a Igreja não deixou faltar o seu constante e crescente ensinamento sobre o matrimónio e a família. Uma das expressões mais altas deste Magistério foi proposta pelo Concílio Ecuménico Vaticano II, na Constituição pastoral Gaudium et Spes, que dedica um capítulo inteiro à promoção da dignidade do matrimónio e da família (cf. GS, 47-52). Ele definiu o matrimónio como comunidade de vida e de amor (cf. GS, 48), colocando o amor no centro da família e mostrando, ao mesmo tempo, a verdade deste amor face às diversas formas de reducionismo presentes na cultura contemporânea. O “verdadeiro amor entre marido e esposa” (GS, 49) implica a doação recíproca de si, inclui e integra a dimensão sexual e a afetividade, correspondendo ao desígnio divino (cf. GS, 48-49). Além disso, a Gaudium et Spes, no número 48, frisa a radicação dos esposos em Cristo: Cristo Senhor “vem ao encontro dos cônjuges cristãos no sacramento do matrimónio”, e com eles permanece. Na encarnação, Ele assume o amor humano, purifica-o, leva-o à plenitude e doa aos esposos, com o seu Espírito, a capacidade de o viver, permeando toda a sua vida de fé, esperança e caridade. Deste modo, os esposos são como que consagrados e, mediante uma graça própria, edificam o Corpo de Cristo e constituem como que uma Igreja doméstica (cf. LG, 11), de modo que a Igreja, para compreender plenamente o seu mistério, olha para a família cristã, que o manifesta de modo genuíno» (IL, 4).

A dimensão missionária da família

48. À luz do ensinamento conciliar e magisterial sucessivo, sugere-se que se aprofunde a dimensão missionária da família comoIgreja doméstica, que se arraiga no sacramento do Baptismo e se realiza cumprindo a própria ministerialidade no seio da comunidade cristã. A família é por sua natureza missionária e incrementa a sua fé no gesto de a doar aos outros. Para empreender percursos de valorização do papel missionário que lhe foi confiado, é urgente que as famílias cristãs voltem a descobrir a chamada a testemunhar o Evangelho com a vida, sem esconder aquilo em que crêem. O próprio facto de viver a comunhão familiar é uma forma de anúncio missionário. Sob este ponto de vista, é necessário promover a família como protagonista da obra pastoral mediante alguns modelos de testemunho, entre os quais: a solidariedade para com os pobres, a abertura à diversidade das pessoas, a preservação da criação, o compromisso pela promoção do bem comum a partir do território no qual ela vive.

A família caminho da Igreja

49. (18) «Em continuidade com o Concílio Vaticano II, o Magistério pontifício aprofundou a doutrina sobre o matrimónio e sobre a família. Em particular Paulo VI, com a Encíclica Humanae Vitae, evidenciou o vínculo íntimo entre amor conjugal e geração da vida. São João Paulo II dedicou à família uma atenção especial através das suas catequeses sobre o amor humano, da Carta às famílias (Gratissimam Sane) e sobretudo com a Exortação Apostólica Familiaris Consortio. Nestes documentos, o Pontífice definiu a família “caminho da Igreja”; ofereceu uma visão de conjunto sobre a vocação do homem e da mulher para o amor; propôs as linhas fundamentais para a pastoral da família e para a presença da família na sociedade. Em particular, ao tratar a caridade conjugal (cf. FC, 13), descreveu o modo como os cônjuges, no seu amor recíproco, recebem o dom do Espírito de Cristo e vivem a sua chamada à santidade» (IL, 5).

A medida divina do amor

50. (19) «Bento XVI, na Encíclica Deus Caritas Est retomou o tema da verdade do amor entre homem e mulher, que só se ilumina plenamente à luz do amor de Cristo crucificado (cf. DCE, 2). Ele reafirma: “O matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano” (DCE, 11). Além disso, na Encíclica Caritas in Veritate, ele evidencia a importância do amor como princípio de vida na sociedade (cf. CiV, 44), lugar no qual se aprende a experiência do bem comum» (IL, 6).

A família em oração

51. O ensinamento dos Pontífices convida a aprofundar a dimensão espiritual da vida familiar a partir da redescoberta da oração em família e da escuta em comum da Palavra de Deus, da qual brota o compromisso de caridade. Para a vida da família é de importância fundamental a redescoberta do dia do Senhor, como sinal do seu profundo radicar-se na comunidade eclesial. Além disso, proponha-se um acompanhamento pastoral adequado para fazer crescer uma espiritualidade familiar encarnada, em resposta às exigências que surgem na vivência diária. Considera-se útil que a espiritualidade da família seja alimentada por fortes experiências de fé e em particular pela participação fiel na Eucaristia, «fonte e ápice de toda a vida cristã» (LG, 11).

Família e fé

52. (20) «O Papa Francisco, na Encíclica Lumen Fidei, ao tratar o vínculo entre a família e a fé, escreve: “O encontro com Cristo, o deixar-se conquistar e guiar pelo seu amor alarga o horizonte da existência, dá-lhe uma esperança firme que não desilude. A fé não é um refúgio para gente sem coragem, mas a dilatação da vida: faz descobrir uma grande chamada – a vocação ao amor – e assegura que este amor é fiável, que vale a pena entregar-se a ele, porque o seu fundamento se encontra na fidelidade de Deus, que é mais forte do que toda a nossa fragilidade” (LF, 53)» (IL, 7).

Catequese e família

53. Muitos consideram necessária uma renovação dos percursos catequéticos para a família. A este respeito, tenha-se o cuidado de valorizar os casais como protagonistas concretos da catequese, sobretudo em relação aos próprios filhos, em colaboração com sacerdotes, diáconos e pessoas consagradas. Esta colaboração ajuda a considerar a vocação para o matrimónio como uma realidade importante, para a qual é preciso preparar-se adequadamente por um período de tempo conveniente. A integração de famílias cristãs sólidas e de ministros confiáveis torna credível o testemunho de uma comunidade que se dirige aos jovens a caminho rumo às grandes opções da vida.

A comunidade cristã renuncie a ser uma agência de serviços para se tornar, ao contrário, um lugar no qual as famílias nascem, se encontram e se confrontam juntas, caminhando na fé e partilhando percursos de crescimento e de intercâmbio recíproco.

A indissolubilidade do matrimónio e a alegria de viver juntos

54. (21) O dom recíproco constitutivo do matrimónio sacramental está arraigado na graça do batismo, que estabelece a aliança fundamental de cada pessoa com Cristo na Igreja. No acolhimento recíproco e com a graça de Cristo, os nubentes prometem um ao outro o dom total de si, a fidelidade e a abertura à vida, e reconhecem como elementos constitutivos do matrimónio os dons que Deus lhes oferece, levando a sério o seu compromisso mútuo, em seu nome e perante a Igreja. Pois bem, na fé é possível assumir os bens do matrimónio como compromissos que melhor se cumprem mediante a ajuda da graça do sacramento. Deus consagra o amor dos esposos e confirma a sua indissolubilidade, oferecendo-lhes a ajuda para viver a fidelidade, a integração recíproca e a abertura à vida. Por conseguinte, o olhar da Igreja dirige-se aos esposos como ao coração da família inteira que, também ela, fixa o próprio olhar em Jesus.

55. A alegria do homem é expressão da plena realização da própria pessoa. Para propor a unicidade da alegria que deriva da união dos cônjuges e da constituição de um novo núcleo familiar, é oportuno apresentar a família como um lugar de relacionamentos pessoais e gratuitos, do modo como não se verifica noutros grupos sociais. O dom recíproco e gratuito, a vida que nasce e a salvaguarda de todos os seus membros, desde os mais pequeninos até aos idosos, são apenas alguns dos aspectos que tornam a família única na sua beleza. É importante fazer amadurecer a ideia de que o matrimónio constitui uma escolha para a vida inteira, que não limita a nossa existência mas torna-a mais rica e completa, inclusive no meio das dificuldades.

Através desta opção de vida, a família edifica a sociedade não como soma de habitantes de um território, nem como conjunto de cidadãos de um Estado, mas como autêntica experiência de povo, e de Povo de Deus.

Capítulo III

Família e caminho rumo à sua plenitude

O mistério criatural do matrimónio

56. (22) Nesta mesma perspetiva, fazendo nosso o ensinamento do Apóstolo segundo o qual a criação inteira foi pensada em Cristo e para Cristo (cf. Cl 1, 16), o Concílio Vaticano II quis manifestar apreço pelo matrimónio natural e pelos elementos válidos, presentes nas outras religiões (cf. NA, 2) e nas culturas, não obstante os limites e as insuficiências (cf. RM, 55). A presença dos semina Verbi nas culturas (cf. AG, 11) poderia ser aplicada, sob alguns aspectos, também à realidade matrimonial e familiar de tantas culturas e de pessoas não cristãs. Portanto, existem elementos válidos também em determinadas formas fora do matrimónio cristão – contudo, fundado sobre a relação estável e verdadeira entre um homem e uma mulher – que, de qualquer maneira, consideramos para ele orientadas. Com o olhar voltado para a sabedoria humana dos povos e das culturas, a Igreja reconhece também esta família como célula básica necessária e fecunda da convivência humana.

57. A Igreja está consciente do alto perfil do mistério criatural do matrimónio entre um homem e uma mulher. Por conseguinte, deseja valorizar a original graça criatural que abrange a experiência de uma aliança conjugal sinceramente intencionada a corresponder a esta vocação originária e a pôr em prática a sua justiça. A seriedade da adesão a este projecto e a coragem que ela exige deixam-se apreciar de maneira particular precisamente hoje, no momento em que o valor desta inspiração, que se refere a todos os vínculos construídos pela família, é posto em dúvida ou até censurado e removido.

Por isso, até no caso em que o amadurecimento da decisão de chegar ao matrimónio sacramental por parte de conviventes ou de pessoas casadas civilmente ainda esteja numa fase virtual, incipiente, ou de aproximação gradual, pede-se que a Igreja não se subtraia à tarefa de encorajar e de promover este desenvolvimento. Ao mesmo tempo, agirá bem se demonstrar apreço e amizade em relação ao compromisso já assumido, do qual reconhecerá os elementos de coerência com o desígnio criatural de Deus.

No que diz respeito às famílias compostas de uniões conjugais com disparidade de culto, cujo número continua a aumentar não somente nos territórios de missão, mas também nos países de antiga tradição cristã, ressalta-se a importância de desenvolver um adequado cuidado pastoral.

Verdade e beleza da família e misericórdia para com as famílias feridas e frágeis

58. (23) Com íntima alegria e profunda consolação, a Igreja olha para as famílias que permanecem fiéis aos ensinamentos do Evangelho, agradecendo-lhes e encorajando-as pelo testemunho que oferecem. Com efeito, graças a elas torna-se credível a beleza do matrimónio indissolúvel e fiel para sempre. Na família, «que se poderia chamar Igreja doméstica» (LG, 11), amadurece a primeira experiência eclesial da comunhão entre pessoas, na qual se reflete, mediante a graça, o mistério da Santíssima Trindade. «É aqui que se aprendem a tenacidade e a alegria do trabalho, o amor fraterno, o perdão generoso e sempre renovado e, sobretudo, o culto divino, através da oração e do oferecimento da própria vida» (CIC, 1657). A Sagrada Família de Nazaré é o seu modelo admirável, em cuja escola nós «compreendemos por que motivo devemos ter uma disciplina espiritual, se quisermos seguir a doutrina do Evangelho e tornar-nos discípulos de Cristo» (Paulo VI, Discurso em Nazaré, 5 de janeiro de 1964). O Evangelho da família nutre também as sementes que ainda esperam amadurecer, e deve cuidar das árvores que secaram e não podem ser descuidadas.

O vínculo íntimo entre Igreja e família

59. A bênção e a responsabilidade de uma nova família, selada mediante o sacramento eclesial, comporta a disponibilidade a tornar-se fomentador e promotor, no seio da comunidade cristã, da qualidade geral da aliança entre homem e mulher: no âmbito do vínculo social, da geração dos filhos, da salvaguarda dos mais frágeis, da vida comum. Esta disponibilidade exige uma responsabilidade que tem o direito de ser sustentada, reconhecida e apreciada.

Em virtude do sacramento cristão cada família torna-se, para todos os efeitos, um bem para a Igreja, que por sua vez pede que seja considerada um bem para a própria família nascente. Nesta perspectiva, indubitavelmente será um dom inestimável para o hoje da Igreja a disposição humilde a considerar de maneira mais equitativa esta reciprocidade do «bonum Ecclesiae»: a Igreja é um bem para a família, a família constitui um bem para a Igreja. A preservação do dom sacramental do Senhor comporta a responsabilidade, por um lado, do casal cristão e, por outro, da comunidade cristã, cada qual da maneira que lhe compete. Quando surgem dificuldades, inclusive graves, de preservar a união matrimonial, o discernimento das respectivas obrigações e das relativas omissões deverá ser aprofundado lealmente pelo casal, com a ajuda da comunidade, em vista de compreender, avaliar e remediar aquilo que foi omitido ou descuidado por ambas as partes.

60. (24) A Igreja, enquanto mestra segura e mãe amorosa, não obstante reconheça que para os batizados não há outro vínculo nupcial a não ser o sacramental, e que cada rutura do mesmo é contrária à vontade de Deus, contudo está consciente da fragilidade de muitos dos seus filhos, que encontram dificuldades no caminho da fé. «Portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia. […] Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A todos devem chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico de Deus, que agem misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus defeitos e das suas quedas» (EG, 44).

A família dom e tarefa

61. A atitude dos fiéis em relação às pessoas que ainda não chegaram à compreensão da importância do sacramento nupcial deve manifestar-se principalmente através de uma relação de amizade pessoal, aceitando o outro como é, sem o julgar, indo ao encontro das suas necessidades fundamentais e, ao mesmo tempo, dando testemunho do amor e da misericórdia de Deus. É importante ter a consciência de que somos todos frágeis, pecadores como os outros, contudo sem deixar de afirmar os bens e os valores do matrimónio cristão. Além disso, há que adquirir a consciência de que no desígnio de Deus a família não constitui um dever, mas um dom, e que hoje a decisão de aceder ao sacramento não é algo já decidido desde o início, mas um passo que deve amadurecer e uma meta que é preciso atingir.

Ajudar a alcançar a plenitude

62. (25) Em ordem a uma abordagem pastoral das pessoas que o contraíram matrimónio civil, que são divorciadas e recasadas, ou que simplesmente convivem, compete à Igreja revelar-lhes a pedagogia divina da graça nas suas vidas e ajudá-las a alcançar a plenitude do plano de Deus para elas. Seguindo o olhar de Cristo, cuja luz ilumina cada homem (cf. Jo 1, 9; GS, 22), a Igreja dirige-se com amor para quantos participam na sua vida de modo incompleto, reconhecendo que a graça de Deus age também nas suas vidas, incutindo-lhes a coragem para praticar o bem, para cuidar amorosamente um do outro e para estar ao serviço da comunidade na qual vivem e trabalham.

63. A comunidade cristã demonstre-se hospitaleira em relação aos casais que se encontram em dificuldade, também através da proximidade de famílias que vivem o matrimónio cristão. A Igreja põe-se ao lado dos cristãos que correm o risco da separação, a fim de que voltem a descobrir a beleza e a força da sua vida conjugal. Caso se verifique um doloroso termo da sua relação, a Igreja sente o dever de acompanhar este momento de sofrimento, de tal modo que não se acentuem desastrosas contraposições entre os cônjuges, e sobretudo para que os filhos venham a sofrer o menos possível.

É desejável que nas Dioceses se promovam percursos de participação progressiva para as pessoas conviventes ou unidas civilmente. Começando a partir do matrimónio civil, que em seguida elas cheguem ao matrimónio cristão, depois de um período de discernimento que no final as leve a uma escolha verdadeiramente consciente.

64. (26) A Igreja olha com apreensão para a desconfiança de tantos jovens em relação ao compromisso conjugal e sofre pela precipitação com que tantos jovens decidem pôr fim ao vínculo assumido, instaurando outro. Tais fiéis, que fazem parte da Igreja, têm necessidade de uma atenção pastoral misericordiosa e animadora, distinguindo adequadamente as situações. Os jovens batizados devem ser encorajados a não hesitar diante da riqueza que o sacramento do matrimónio suscita nos seus planos de amor, fortalecidos pelo apoio que recebem da graça de Cristo e da possibilidade de participar plenamente na vida da Igreja.

Os jovens e o medo de casar

65. Muitos jovens têm medo de falhar diante da perspectiva matrimonial, também por causa de numerosos casos de fracasso matrimonial. Por isso, é necessário discernir mais atentamente as profundas motivações da renúncia e do desânimo. Com efeito, pode-se pensar que em muitos casos aquelas motivações têm a ver precisamente com a consciência de uma finalidade que – não obstante seja apreciada e até desejada – parece desproporcionada diante de um cálculo razoável das próprias forças, ou com a dúvida insuperável a propósito da constância dos próprios sentimentos. Mais do que a intolerância à fidelidade e à estabilidade do amor, que permanecem o objecto do desejo, muitas vezes é o anseio – ou até a angústia – de não as poder garantir que induz à remoção. A dificuldade, por si só superável, é chamada em causa como prova da impossibilidade radical. Além disso, às vezes aspectos de conveniência social e problemas económicos ligados à celebração das núpcias influem sobre a decisão de não casar.

66. (27) Neste sentido, uma nova dimensão da pastoral familiar hodierna consiste em prestar atenção à realidade dos matrimónios civis entre um homem e uma mulher, aos matrimónios tradicionais e, tendo em conta as devidas diferenças, também às convivências. Quando a união alcança uma estabilidade notável através de um vínculo público, é conotada por um afeto profundo, pela responsabilidade em relação à prole e pela capacidade de superar as provações, pode ser vista como uma ocasião que deve ser acompanhada no desenvolvimento para o sacramento do matrimónio. Ao contrário, muitas vezes a convivência estabelece-se não em vista de um possível matrimónio futuro, mas sem qualquer intenção de estabelecer uma relação institucional.

67. (28) Em conformidade com o olhar misericordioso de Jesus, a Igreja deve acompanhar com atenção e cuidado os seus filhos mais frágeis, marcados pelo amor ferido e confuso, restituindo-lhes confiança e esperança como a luz do farol de um porto ou de uma tocha levada ao povo para iluminar quantos perderam a rota ou se encontram no meio da tempestade. Conscientes de que a maior misericórdia é dizer a verdade com amor, vamos além da compaixão. O amor misericordioso, do mesmo modo que atrai e une, também transforma e eleva. Convida à conversão. Do mesmo modo entendemos a atitude do Senhor, que não condena a mulher adúltera, mas pede-lhe que não volte a pecar (cf. Jo 8, 1-11).

A misericórdia é verdade revelada

68. Para a Igreja, trata-se de iniciar a partir das situações concretas das famílias de hoje, todas necessitadas de misericórdia, a começar por aquelas que mais sofrem. Com efeito, na misericórdia resplandece a soberania de Deus, com a qual Ele é fiel sempre de novo ao seu ser, que é amor (cf. 1 Jo 4, 8), e ao seu pacto. A misericórdia é a revelação da fidelidade e da identidade de Deus consigo mesmo e assim, ao mesmo tempo, demonstração da identidade cristã. Por isso, a misericórdia em nada diminui a verdade. Ela mesma é verdade revelada, profundamente vinculada às verdades fundamentais da fé – a encarnação, a morte e a ressurreição do Senhor – e sem elas decairia no nada. A misericórdia é «o centro da revelação de Jesus Cristo» (MV, 25).

III PARTE

A MISSÃO DA FAMÍLIA HOJE

Capítulo I

Família e Evangelização

Anunciar o Evangelho da família hoje, nos vários contextos

69. (29) O diálogo sinodal abordou algumas instâncias pastorais mais urgentes, que devem ser confiadas à concretização em cada uma das Igrejas locais, na comunhão «cum Petro et sub Petro». O anúncio do Evangelho da família constitui uma urgência para a nova evangelização. A Igreja está chamada a pô-lo em prática com ternura de mãe e clareza de mestra (cf. Ef 4, 15), em fidelidade à kenosi misericordiosa de Cristo. A verdade encarna-se na fragilidade humana, não para a condenar, mas para a salvar (cf. Jo 3, 16-17).

Ternura em família – ternura de Deus

70. Ternura quer dizer oferecer com alegria e suscitar no outro o júbilo de se sentir amado. Ela manifesta-se de modo particular prestando uma atenção primorosa aos limites do próximo, especialmente quando eles sobressaem de maneira evidente. Tratar com delicadeza e respeito significa curar as feridas e restituir esperança, de forma a reavivar no outro a confiança. A ternura nos relacionamentos familiares é a virtude quotidiana que ajuda a superar os conflitos interiores e relacionais. A este propósito, o Papa Francisco convida-nos a meditar: «Temos a coragem de acolher, com ternura, as situações difíceis e os problemas de quem vive ao nosso lado, ou preferimos as soluções impessoais, talvez eficientes mas desprovidas do calor do Evangelho? Quão grande é a necessidade que o mundo tem hoje de ternura! Paciência de Deus, proximidade de Deus, ternura de Deus!» (Homilia por ocasião da Santa Missa da Noite na Solenidade do Natal do Senhor, 24 de Dezembro de 2014).

71. (30) Evangelizar é responsabilidade de todo o povo de Deus, cada qual segundo o ministério e o carisma que lhe são próprios. Sem o testemunho jubiloso dos cônjuges e das famílias, Igrejas domésticas, o anúncio, embora seja correto, corre o risco de ser incompreendido ou de afogar no mar de palavras que caracteriza a nossa sociedade (cf. NMI, 50). Os Padres sinodais sublinharam reiteradas vezes que, em virtude da graça do sacramento nupcial, as famílias católicas estão chamadas a ser, elas mesmas, protagonistas ativas da pastoral familiar.

A família protagonista da pastoral

72. A Igreja deve infundir nas famílias um sentido de pertença eclesial, um sentido do «nós» em que nenhum membro é esquecido. Todos sejam animados a desenvolver as suas capacidades e a realizar o programa da própria vida ao serviço do Reino de Deus. Cada família, inserida no contexto eclesial, volte a descobrir a alegria da comunhão com outras famílias para servir o bem comum da sociedade, promovendo uma política, uma economia e uma cultura ao serviço da família, inclusive através do recurso aos social networks e aos meios de comunicação.

Formulam-se votos a fim de que haja a possibilidade de criar pequenas comunidades de famílias como testemunhas vivas dos valores evangélicos. Sente-se a necessidade de preparar, formar e responsabilizar algumas famílias que possam acompanhar outras a viver cristãmente. Também devem ser recordadas e encorajadas as famílias que se demonstram dispostas a viver a missão «ad gentes». Finalmente, salienta-se a importância de unir a pastoral juvenil à pastoral familiar.

A liturgia nupcial

73. A preparação das núpcias ocupa a atenção dos nubentes durante muito tempo. À celebração do casamento, que preferivelmente deve ser vivida na comunidade de pertença de um ou de ambos os nubentes, é necessário dedicar a devida atenção, pondo em evidência sobretudo a sua índole propriamente espiritual e eclesial. Através de uma participação cordial e jubilosa a comunidade cristã, invocando o Espírito Santo, recebe no seu seio a nova família a fim de que, como Igreja doméstica, se sinta parte da maior família eclesial.

Frequentemente, o celebrante tem a oportunidade de se dirigir a uma assembleia composta por pessoas que participam pouco na vida eclesial ou que pertencem a uma outra confissão cristã ou comunidade religiosa. Por conseguinte, trata-se de uma preciosa ocasião de anúncio do Evangelho da família, que seja capaz de suscitar, inclusive nas famílias presentes, uma nova descoberta da fé e do amor que derivam de Deus. A celebração nupcial é também uma oportunidade propícia para convidar muitas pessoas à celebração do sacramento da Reconciliação.

A família obra de Deus

74. (31) Será decisivo pôr em evidência o primado da graça e, por conseguinte, as possibilidades que o Espírito oferece no sacramento. Trata-se de levar a experimentar que o Evangelho da família é alegria que «torna repletos o coração e a vida inteira», porque em Cristo somos «libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento» (EG, 1). À luz da parábola do semeador (cf. Mt 13, 3-9), a nossa tarefa consiste em cooperar na sementeira: o resto é obra de Deus. Também não podemos esquecer que a Igreja que prega sobre a família é sinal de contradição.

75. O primado da graça manifesta-se plenamente quando a família explica a razão da sua fé e os cônjuges vivem o seu matrimónio como uma vocação. A este propósito, sugere-se que: se apoie e encoraje o testemunho crente dos cônjuges cristãos; se percorram sólidos percursos de crescimento da graça baptismal, principalmente na fase juvenil; se recorra, na pregação e na catequese, a uma linguagem simbólica, experiencial e significativa, inclusive através de encontros e de cursos especiais para os agentes no campo da pastoral, de maneira a alcançar eficazmente os seus destinatários e de educá-los para invocar e reconhecer a presença de Deus entre os cônjuges unidos mediante o sacramento, numa condição de conversão permanente.

Conversão missionária e linguagem renovada

76. (32) É por isso que se pede à Igreja inteira uma conversão missionária: é necessário que ela não se limite a um anúncio meramente teórico, desvinculado dos problemas reais das pessoas. Nunca podemos esquecer que a crise da fé comportou uma crise do matrimónio e da família e, como consequência, foi muitas vezes interrompida a transmissão da própria fé dos pais aos filhos. Diante de uma fé forte, não tem incidência a imposição de determinadas perspetivas culturais que debilitam a família e o matrimónio.

77. (33) A conversão refere-se também à linguagem, para que ela seja efetivamente significativa. O anúncio deve levar a experimentar que o Evangelho da família é resposta às expectativas mais profundas da pessoa humana: à sua dignidade e à sua plena realização na reciprocidade, na comunhão e na fecundidade. Não se trata unicamente de apresentar uma normativa, mas de propor valores, respondendo à necessidade dos mesmos que hoje se constata inclusive nos países mais secularizados.

78. A mensagem cristã deve ser anunciada, privilegiando uma linguagem que suscite a esperança. É necessário seguir uma comunicação clara, cativante e aberta, que não moralize, nem julgue e nem sequer controle, mas dê testemunho do ensinamento moral da Igreja, permanecendo contemporaneamente sensível às condições das pessoas na sua individualidade.

Uma vez que vários temas do Magistério eclesial já não são compreendidos por muitas pessoas, sente-se a urgência de uma linguagem capaz de alcançar todos, especialmente os jovens, para transmitir a beleza do amor familiar e fazer compreender o significado de termos como doação, amor conjugal, fecundidade e procriação.

A mediação cultural

79. Para uma transmissão mais apropriada da fé, parece necessária uma mediação cultural capaz de expressar com coerência a dúplice fidelidade ao Evangelho de Jesus e ao homem contemporâneo. Como ensinava o Beato Paulo VI: «A nós especialmente, Pastores da Igreja, incumbe o cuidado de remodelar os processos com ousadia e com prudência, e numa fidelidade total ao seu conteúdo, tornando-os o mais possível adaptados e eficazes, para comunicar a mensagem evangélica aos homens do nosso tempo» (EN, 40).

Hoje, de modo particular, é necessário pôr em evidência a importância do anúncio jubiloso e optimista das verdades da fé sobre a família, valendo-se inclusive de grupos especializados, peritos em comunicação, que saibam ter a devida consideração pelas problemáticas que derivam dos estilos de vida contemporâneos.

A Palavra de Deus fonte de vida espiritual para a família

80. (34) A Palavra de Deus é fonte de vida e espiritualidade para a família. Toda a pastoral familiar deverá deixar-se modelar interiormente e formar os membros da Igreja doméstica mediante a leitura orante e eclesial da Sagrada Escritura. A Palavra de Deus é não apenas uma boa nova para a vida particular das pessoas, mas também um critério de juízo e uma luz para o discernimento dos vários desafios que os cônjuges e as famílias devem enfrentar.

81. À luz da Palavra de Deus, que exige discernimento nas situações mais diversificadas, a pastoral deve ter em conta que uma comunicação aberta ao diálogo livre de preconceitos é necessária particularmente em relação àqueles católicos que, em matéria de matrimónio e de família não vivem, ou não se encontram em condições de viver, em pleno acordo com o ensinamento da Igreja.

A sinfonia das diferenças

82. (35) Ao mesmo tempo, muitos Padres sinodais insistiram sobre uma abordagem mais positiva das riquezas das diversas experiências religiosas, sem esconder as dificuldades. Nestas diferentes realidades religiosas e na grande diversidade cultural que caracteriza as Nações, é oportuno apreciar primeiro as possibilidades positivas e, à luz destas, avaliar os limites e as carências.

83. A partir da constatação da pluralidade religiosa e cultural, formulam-se votos a fim de que o Sínodo preserve e valorize a imagem de «sinfonia das diferenças». Já se evidenciou que, no seu conjunto, a pastoral matrimonial e familiar tem necessidade de apreciar estes elementos positivos que se encontram nas várias experiências religiosas e culturais, e que representam uma «praeparatio evangelica». Através do encontro com as pessoas que empreenderam um caminho de consciência e de responsabilidade em relação aos autênticos bens do matrimónio, poder-se-á estabelecer uma colaboração concreta para a promoção e a defesa da família.

 

Capítulo II

Família e formação

A preparação para o matrimónio

84. (36) O matrimónio cristão é uma vocação que se acolhe mediante uma preparação adequada ao longo de um itinerário de fé, através de um discernimento maduro, e não deve ser considerado unicamente uma tradição cultural, nem sequer uma exigência social ou jurídica. Portanto, é preciso realizar percursos que acompanhem a pessoa e o casal, de tal modo que à comunicação dos conteúdos da fé se una a experiência de vida oferecida por toda a comunidade eclesial.

85. A fim de fazer compreender a vocação para o matrimónio cristão, é indispensável melhorar a preparação para o sacramento, e de forma particular a catequese pré-matrimonial – às vezes pobre de conteúdo – que faz parte integrante da pastoral ordinária. É importante que os esposos cultivem responsavelmente a sua fé, fundamentada no ensinamento da Igreja apresentado de maneira clara e compreensível.

Também a pastoral dos nubentes deve inserir-se no compromisso geral da comunidade cristã de apresentar de modo adequado e convincente a mensagem evangélica a propósito da dignidade da pessoa, da sua liberdade e do respeito pelos direitos humanos.

86. Na mudança cultural em curso muitas vezes são apresentados, se não até impostos, modelos em contraste com a visão cristã da família. Por conseguinte, os percursos formativos deverão oferecer itinerários de educação que ajudem as pessoas a manifestar de maneira adequada o próprio desejo de amor na linguagem da sexualidade. No contexto cultural e social dos nossos dias, em que a sexualidade se apresenta frequentemente desvinculada de um programa de amor autêntico, a família, embora permaneça o espaço pedagógico privilegiado, não pode ser o único lugar de educação para a sexualidade. Por isso, é necessário estruturar verdadeiros percursos pastorais de auxílio às famílias, destinados tanto aos indivíduos como aos casais, com uma atenção especial às fases da puberdade e da adolescência, nos quais é preciso ajudar a descobrir a beleza da sexualidade no amor.

Observa-se que em certos países existem programas formativos impostos pela autoridade pública, que apresentam conteúdos em contraste com a visão propriamente humana e cristã: em relação a eles, é necessário afirmar com determinação o direito à objecção de consciência por parte dos educadores.

A formação dos futuros presbíteros

87. (37) Foi reiteradamente evocada a necessidade de uma renovação radical da prática pastoral, à luz do Evangelho da família, superando as óticas individualistas que ainda a caracterizam. Por isso, insistiu-se várias vezes sobre a renovação da formação dos presbíteros, dos diáconos, dos catequistas e dos outros agentes no campo da pastoral, mediante uma maior participação das próprias famílias.

88. A família de origem é o ventre da vocação sacerdotal, que se alimenta do seu testemunho. Sente-se amplamente uma crescente necessidade de incluir as famílias, de modo particular a presença feminina, na formação sacerdotal. Sugere-se que durante a sua formação, os seminaristas passem períodos suficientes com a própria família e sejam orientados na realização de experiências de pastoral familiar a na aquisição de um conhecimento adequado da situação contemporânea das famílias. Além disso, tenha-se em consideração que alguns seminaristas provêm de contextos familiares difíceis. A presença dos leigos e das famílias, inclusive nas realidades do Seminário, é indicada como benéfica, a fim de que os candidatos ao sacerdócio compreendam o valor da comunhão entre as várias vocações. Na formação para o ministério ordenado não se pode descuidar o desenvolvimento afectivo e psicológico, participando também de modo directo em percursos adequados.

A formação do clero e dos agentes no campo da pastoral

89. Na formação permanente do clero e dos agentes no campo da pastoral, é desejável que se continue a cuidar com instrumentos apropriados do amadurecimento da dimensão afectiva e psicológica, que lhes será indispensável para o acompanhamento pastoral das famílias. Sugere-se que o Departamento diocesano para a família e os demais Departamentos pastorais possam intensificar a sua colaboração em ordem a uma obra pastoral mais eficaz.

Família e instituições públicas

90. (38) Sublinhou-se de igual modo a necessidade de uma evangelização que denuncie com franqueza os condicionamentos culturais, sociais, políticos e económicos, como o espaço excessivo reservado à lógica do mercado, que impedem uma autêntica vida familiar, determinando discriminações e várias formas de pobreza, de exclusão e de violência. Por isso, é preciso desenvolver um diálogo e uma cooperação com as estruturas sociais, encorajando e apoiando os leigos que, como cristãos, se comprometem nos âmbitos cultural e sociopolítico.

91. Considerando que a família é «a célula primária e vital da sociedade» (AA, 11), ela deve voltar a descobrir a sua vocação a favor da vivência social em todos os seus aspectos. É indispensável que, através da sua agregação, as famílias encontrem as modalidades para interagir com as instituições políticas, económicas e culturais, com a finalidade de edificar uma sociedade mais justa.

A colaboração com as instituições públicas nem sempre se revela fácil em todos os contextos. Com efeito, em muitas instituições o conceito de família não coincide com o conceito cristão, nem com o seu sentido natural. Os fiéis vivem em contacto com modelos antropológicos diversos, que frequentemente influem e modificam de maneira radical o seu modo de pensar.

As associações familiares e os movimentos católicos deveriam trabalhar de forma conjunta, a fim de chamar a atenção das instituições sociais e políticas para as instâncias reais da família e de denunciar as práticas que comprometem a sua estabilidade.

O compromisso sociopolítico a favor da família

92. Os cristãos devem comprometer-se de modo directo no contexto sociopolítico, participando concretamente nos processos decisórios e levando ao debate institucional as instâncias da doutrina social da Igreja. Este compromisso favoreceria o desenvolvimento de programas adequados para ajudar os jovens e as famílias em necessidade, que correm o risco do isolamento social e da exclusão.

Nos diversos contextos nacionais e internacionais, é útil voltar a propor a «Carta dos direitos da família», pondo em evidência a sua ligação com a «Declaração universal dos direitos do homem».

Indigência e risco de usura

93. Entre as diversas famílias que se encontram em condições de indigência económica, por causa do desemprego ou da precariedade do trabalho, do número elevado de filhos ou da falta de assistência no campo da saúde social, não raro acontece que certas pessoas, incapazes de aceder ao crédito, se tornam vítimas da usura. A este propósito, sugere-se a criação de estruturas económicas de apoio adequado, para ajudar tais famílias.

Orientar os nubentes no caminho de preparação para o matrimónio

94. (39) A complexa realidade social e os desafios que a família de hoje está chamada a enfrentar exigem um maior compromisso da parte de toda a comunidade cristã, em ordem à preparação dos nubentes para o matrimónio. É necessário recordar a importância das virtudes. Entre elas, a castidade resulta uma condição preciosa para o crescimento genuíno do amor interpessoal. Em relação a esta necessidade, os Padres sinodais concordaram em salientar a exigência de uma maior participação da comunidade inteira, privilegiando o testemunho das próprias famílias, além de uma radicação da preparação para o matrimónio no caminho de iniciação cristã, frisando o nexo do matrimónio com o batismo e com os demais sacramentos. Evidenciou-se de igual modo a necessidade de programas específicos para a preparação próxima do matrimónio, a fim de que constituam uma verdadeira experiência de participação na vida eclesial, aprofundando os diversos aspectos da vida familiar.

95. Deseja-se um aprofundamento dos temas formativos nos itinerários pré-matrimoniais, de tal maneira que eles se tornem percursos de educação para a fé e para o amor. Eles deveriam assumir a fisionomia de um caminho orientado para o discernimento vocacional pessoal e de casal. Com esta finalidade, é preciso criar uma melhor sinergia entre os vários âmbitos pastorais – juvenil, familiar, catequese, movimentos e associações – para qualificar o itinerário formativo em sentido mais acentuadamente eclesial.

De várias partes reitera-se a exigência de uma renovação da pastoral da família, no contexto de uma pastoral de conjunto, capaz de abranger todas as fases da vida com uma formação completa, que compreenda a experiência e o valor do testemunho. Os percursos de preparação para o matrimónio sejam propostos também por pessoas casadas, que podem acompanhar os nubentes antes do casamento e nos primeiros anos de vida matrimonial, valorizando deste modo a ministerialidade conjugal.

Acompanhar os primeiros anos da vida matrimonial

96. (40) Os primeiros anos de matrimónio constituem um período vital e delicado, durante o qual os casais crescem na consciência dos desafios e do significado da própria união. Daqui deriva a exigência de um acompanhamento pastoral que continue também depois da celebração do sacramento (cf. FC, parte III). Nesta pastoral resulta de grande importância a presença de casais com experiência. A paróquia é considerada o lugar onde casais maduros podem ser postos à disposição dos casais mais jovens, com a eventual participação de associações, movimentos eclesiais e novas comunidades. É necessário encorajar os esposos a uma atitude fundamental de acolhimento do grande dom dos filhos. É preciso salientar também a importância da espiritualidade familiar, da oração e da participação na Eucaristia dominical, animando os casais a reunir-se regularmente para promover o crescimento da vida espiritual e a solidariedade nas exigências concretas da vida. Liturgias, práticas devocionais e Eucaristias celebradas para as famílias, principalmente no aniversário do matrimónio, foram mencionadas como vitais para favorecer a evangelização através da família.

97. Nos primeiros anos de vida conjugal, não raro, verifica-se uma certa introversão do casal, com a consequência do isolamento do contexto social. Por este motivo, é necessário levar os jovens casais a sentirem a proximidade da comunidade. É unânime a convicção de que a partilha de experiências de vida matrimonial ajuda as novas famílias a amadurecer uma maior consciência acerca da beleza e dos desafios do matrimónio. A consolidação da rede relacional entre os casais e a criação de vínculos significativos são necessárias para o amadurecimento da dimensão familiar. Dado que muitas vezes são principalmente os movimentos e os grupos eclesiais que oferecem e garantem tais momentos de crescimento e de formação, formulam-se votos a fim de que, sobretudo a nível diocesano, se multipliquem os esforços destinados a acompanhar de maneira constante os jovens casais.

Capítulo III

Família e acompanhamento eclesial

Cuidado pastoral de quantos vivem no matrimónio civil ou convivem

98. (41) Enquanto continua a anunciar e promover o matrimónio cristão, o Sínodo encoraja também o discernimento pastoral das situações de muitas pessoas que não vivem mais esta realidade. É importante entrar em diálogo pastoral com tais pessoas, com a finalidade de pôr em evidência os elementos da sua vida que podem conduzir a uma maior abertura ao Evangelho do matrimónio na sua plenitude. Os pastores devem identificar elementos que podem favorecer a evangelização e o crescimento humano e espiritual. Uma nova sensibilidade da pastoral hodierna consiste em captar os elementos positivos, presentes nos matrimónios civis e, tendo em conta as devidas diferenças, nas convivências. É necessário que na proposta eclesial, mesmo afirmando com clareza a mensagem cristã, indiquemos inclusive os elementos construtivos presentes em tais situações que ainda não, ou já não, correspondem à mesma.

99. O sacramento do matrimónio, como união fiel e indissolúvel entre um homem e uma mulher, chamados a aceitar-se reciprocamente e a acolher a vida, é uma grande graça para a família humana. A Igreja tem o dever e a missão de anunciar esta graça a cada pessoa e em todos os contextos. Ela deve ser também capaz de acompanhar quantos vivem no matrimónio civil ou convivem, na descoberta gradual dos germes do Verbo que aí se encontram escondidos, para os valorizar até à plenitude da união sacramental.

A caminho do sacramento nupcial

100. (42)Observou-se também que em muitos países um «número crescente de casais convivem ad experimentum, sem um matrimónio, nem canónico nem civil» (IL, 81). Em determinados países isto verifica-se especialmente no matrimónio tradicional, arranjado entre famílias e muitas vezes celebrado em diversas etapas. Noutros países, ao contrário, está em crescimento contínuo o número daqueles que, depois de ter vivido juntos durante um longo período, pedem a celebração do matrimónio na Igreja. A convivência simples é com frequência escolhida por causa da mentalidade geral, contrária às instituições e aos compromissos definitivos, mas também devido à espera de uma segurança existencial (trabalho e salário fixo). Finalmente, noutros países, as uniões de facto são deveras numerosas, não somente pela rejeição dos valores da família e do matrimónio, mas sobretudo porque casar é sentido como um luxo, pelas condições sociais, de tal modo que a miséria material impele a viver uniões de facto.

101. (43) Todas estas situações devem ser enfrentadas de maneira construtiva, procurando transformá-las em oportunidades de caminho rumo à plenitude do matrimónio e da família, à luz do Evangelho. Trata-se de aceitá-las e de acompanhá-las com paciência e delicadeza. Visando esta finalidade, é importante o testemunho atraente de autênticas famílias cristãs, como protagonistas da evangelização da família.

102. A escolha do matrimónio civil ou, em vários casos, da convivência frequentemente não é motivada por preconceitos nem por resistências em relação à união sacramental, mas por situações culturais ou contingentes. Em muitas circunstâncias, a decisão de viver juntos é sinal de um relacionamento que quer estruturar-se e abrir-se a uma perspectiva de plenitude. Esta vontade, que se traduz num vínculo duradouro, confiável e aberto à vida, pode considerar-se uma condição para encetar um caminho de crescimento aberto à possibilidade do matrimónio sacramental: um bem possível que deve ser anunciado como dom que enriquece e fortalece a vida conjugal e familiar, e não tanto como um ideal difícil de realizar.

103. Para enfrentar esta necessidade pastoral, principalmente a nível local, a comunidade cristã comprometa-se a fortalecer o estilo de acolhimento que lhe é próprio. Através da dinâmica pastoral dos relacionamentos pessoais é possível pôr em acção uma sã pedagogia que, animada pela graça e de modo respeitoso, favoreça a abertura gradual das mentes e dos corações à plenitude do plano de Deus. Neste âmbito desempenha um papel importante a família cristã, que testemunha com a vida a verdade do Evangelho.

Curar as famílias feridas (separados, divorciados não recasados, divorciados recasados, famílias monoparentais)

104. (44) Quando os esposos passam por problemas nos seus relacionamentos, devem poder contar com a ajuda e o acompanhamento da Igreja. A pastoral da caridade e a misericórdia tendem à recuperação das pessoas e dos relacionamentos. A experiência demonstra que, mediante uma ajuda adequada e com a obra de reconciliação da graça, uma grande percentagem de crises matrimoniais podem ser superadas de maneira satisfatória. Saber perdoar e sentir-se perdoado constituem uma experiência fundamental na vida familiar. O perdão entre os esposos permite experimentar um amor que é para sempre, que nunca passa (cf. 1 Cor 13, 8). No entanto, às vezes quem recebeu o perdão de Deus tem dificuldade de encontrar a força para oferecer um perdão autêntico que regenere a pessoa.

O perdão em família

105. No âmbito dos relacionamentos familiares, a necessidade de reconciliação é praticamente quotidiana, por causa de vários motivos. As incompreensões devidas aos relacionamentos com as famílias de origem, o conflito entre hábitos diversos já radicados, a divergência a respeito da educação dos filhos, a ansiedade diante das dificuldades económicas, a tensão que se manifesta a seguir à perda do trabalho: eis alguns dos motivos correntes que geram conflitos, para cuja superação é necessária uma disponibilidade contínua a compreender as razões do outro e a perdoar-se reciprocamente. A difícil arte da recomposição das relações precisa não apenas do auxílio da graça, mas inclusive da disponibilidade a pedir ajuda externa. A este propósito, a comunidade cristã deve revelar-se verdadeiramente pronta.

Nos casos mais dolorosos, como a traição conjugal, é necessária uma verdadeira obra de reparação para a qual é preciso tornar-se disponível. Um pacto violado pode ser ser restabelecido: para esta esperança é necessário educar-se desde a preparação para o matrimónio.

Aqui há que recordar a importância da obra do Espírito Santo no cuidado das pessoas e das famílias feridas, e a necessidade de caminhos espirituais acompanhados por ministros experientes. Com efeito, é verdade que o Espírito, «que é chamado pela Igreja “luz das consciências”, penetra e enche “as profundezas dos corações” humanos. Mediante esta conversão no Espírito Santo, o homem abre-se ao perdão» (DeV, 45).

«O grande rio da misericórdia»

106. (45) No Sínodo voltou a ressoar claramente a necessidade de opções pastorais corajosas. Confirmando de modo vigoroso a fidelidade ao Evangelho da família e reconhecendo que a separação e o divórcio constituem sempre feridas que provocam sofrimentos profundos nos cônjuges que os experimentam e nos filhos, os Padres sinodais sentiram a urgência de novos caminhos pastorais, que comecem a partir da realidade efetiva das fragilidades familiares, conscientes de que, com frequência, elas são mais «padecidas» com sofrimento do que escolhidas com plena liberdade. Trata-se de situações diferentes, tanto por fatores pessoais como culturais e socioeconómicos. É necessário um olhar diferenciado, como sugeria São João Paulo II (cf. FC, 84).

107. Cuidar das famílias feridas e levá-las a experimentar a misericórdia infinita de Deus é considerado por todos como um princípio fundamental. No entanto, é diferenciada a atitude em relação às pessoas envolvidas. Por um lado, alguns julgam que é necessário encorajar quantos vivem uniões não matrimoniais a empreender o caminho do retorno. Por outro lado, há quem apoie tais pessoas convidando-as a olhar em frente, a sair da prisão da raiva, da desilusão, da dor e da solidão, para se pôr novamente a caminho. Sem dúvida, afirmam outros ainda, esta arte do acompanhamento exige um discernimento prudente e misericordioso, assim como a capacidade de distinguir concretamente a diversidade de cada uma das situações.

108. Não se pode esquecer que a experiência do fracasso matrimonial é sempre uma derrota, para todos. Por isso, depois da tomada de consciência das próprias responsabilidades, cada um precisa de recuperar a confiança e a esperança. Todos têm a necessidade de conceder e de receber misericórdia. Contudo, há que ser promovida a justiça em relação a todas as partes envolvidas no fracasso matrimonial (cônjuges e filhos).

A Igreja tem o dever de pedir aos cônjuges separados e divorciados que se tratem com respeito e misericórdia, sobretudo para o bem dos filhos, aos quais não se podem causar ulteriores sofrimentos. Alguns pedem que também a Igreja demonstre uma atitude análoga em relação a quantos violaram a união. «Do coração da Trindade, do íntimo mais profundo do mistério de Deus, brota e flui incessantemente a grande torrente da misericórdia. Esta fonte nunca poderá esgotar-se, por maior que seja o número daqueles que dela se abeirem. Sempre que alguém tiver necessidade poderá aceder a ela, porque a misericórdia de Deus não tem fim» (MV, 25).

A arte do acompanhamento

109. (46) Antes de tudo, cada família deve ser ouvida com respeito e amor, encontrando companheiros de caminho como Cristo com os discípulos rumo a Emaús. São particularmente válidas para tais situações estas palavras do Papa Francisco: «A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta “arte do acompanhamento”, para que todos aprendam a tirar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Êx 3, 5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã̃» (EG, 169).

110. Muitos apreciaram a referência dos Padres sinodais à imagem de Jesus que acompanha os discípulos de Emaús. Estar próxima da família como companheira de caminho significa, para a Igreja, assumir uma atitude sábia e diferenciada. Às vezes, é necessário permanecer ao lado e ouvir em silêncio; outras, pôr-se à frente para indicar o caminho pelo qual proceder; outras ainda, estar atrás, para sustentar e encorajar. Numa partilha carinhosa, a Igreja faz suas as alegrias e as esperanças, as dores e as angústias de cada família.

111. Releva-se que neste âmbito da pastoral familiar a maior ajuda é oferecida pelos movimentos e pelas associações eclesiais, nas quais a dimensão comunitária é mais acentuadamente salientada e vivida. Ao mesmo tempo, é importante preparar também de maneira específica os sacerdotes para este ministério de consolação e de cura. De várias partes chegou o convite a instituir centros especializados onde sacerdotes e/ou religiosos aprendam a cuidar das famílias, de modo particular das famílias feridas, comprometendo-se a acompanhar o seu caminho na comunidade cristã, que nem sempre está preparada para desempenhar esta tarefa de modo adequado.

Os separados e os divorciados fiéis ao vínculo

112. (47) Um discernimento particular é indispensável para acompanhar pastoralmente os separados, os divorciados, os abandonados. Deve ser acolhido e valorizado o sofrimento daqueles que padeceram injustamente a separação, o divórcio ou o abandono, ou então, por causa dos maus-tratos do cônjuge, foram obrigados a interromper a convivência. O perdão pela injustiça sofrida não é fácil, mas trata-se de um caminho que a graça torna possível. Daqui deriva a necessidade de uma pastoral da reconciliação e da mediação, também através de centros de escuta especializados que devem ser criados nas dioceses. De igual modo, é preciso ressaltar sempre que resulta indispensável assumir de maneira leal e construtiva as consequências da separação ou do divórcio sobre os filhos, contudo vítimas inocentes da situação. Eles não podem ser um «objeto» para contender, e devem ser procuradas as melhores formas para que possam superar o trauma da separação familiar e crescer da maneira mais tranquila possível. De qualquer modo, a Igreja deverá pôr sempre em evidência a injustiça que muitas vezes deriva das situações de divórcio. Há que prestar atenção especial também ao acompanhamento das famílias monoparentais e, de modo particular, é necessário ajudar as mulheres que devem assumir sozinhas a responsabilidade do lar e a educação dos filhos.

Deus nunca abandona

113. De diversas partes faz-se presente que a atitude misericordiosa em relação àqueles cuja relação matrimonial se interrompeu exige que se preste atenção aos diferentes aspectos objectivos e subjectivos que determinaram a sua ruptura. Muitas vozes põem em evidência a constatação de que o drama da separação frequentemente chega no final de longos períodos de conflitualidade que, em casos com filhos, causaram ainda maiores sofrimentos. A isto segue-se a ulterior prova da solidão, na qual vem a encontrar-se o cônjuge que foi abandonado ou que teve a força de interromper uma convivência caracterizada pelo padecimento de maus-tratos contínuos e graves. Trata-se de situações para as quais se espera um cuidado particular da parte da comunidade cristã, especialmente em relação às famílias monoparentais, nas quais às vezes surgem problemas económicos devidos a um trabalho precário, à dificuldade para a manutenção dos filhos, à falta de uma casa.

A condição daqueles que não empreendem uma nova união, permanecendo fiéis ao vínculo, merece todo o apreço e apoio por parte da Igreja, que tem o dever de lhes mostrar o rosto de um Deus que nunca abandona e é sempre capaz de restituir força e esperança.

A simplificação dos procedimentos e a relevância da fé nas causas de nulidade

114. (48) Numerosos Padres sinodais sublinharam a necessidade de tornar mais acessíveis e céleres, se possível totalmente gratuitos, os procedimentos para o reconhecimento dos casos de nulidade. Entre as propostas foram indicados: a superação da necessidade da dupla sentença conforme; a possibilidade de determinar um percurso administrativo sob a responsabilidade do bispo diocesano; a iniciação de um processo sumário nos casos de nulidade notória. Todavia, alguns Padres sinodais afirmam que são contrários a tais propostas, porque não garantiriam um juízo confiável. É necessário reiterar que em todos estes casos se trata de averiguar a verdade sobre a validade do vínculo. Em conformidade com outras propostas, também seria preciso considerar a possibilidade de dar relevância ao papel da fé dos nubentes em ordem à validade do sacramento do matrimónio, conscientes de que entre os batizados todos os matrimónios válidos constituem um sacramento.

115. Releva-se um amplo consenso sobre a oportunidade de tornar mais acessíveis e ágeis, possivelmente gratuitos, os procedimentos para o reconhecimento dos casos de nulidade matrimonial.

Quanto à gratuitidade, alguns sugerem que nas Dioceses se institua um serviço estável de consulta gratuita. A respeito da dupla sentença conforme, é ampla a convergência em ordem à sua superação, ressalvada a possibilidade de recurso por parte do Defensor do vínculo ou de uma das partes. Em contrapartida, não encontra consenso unânime a possibilidade de um procedimento administrativo sob a responsabilidade do Bispo diocesano, porque aqui alguns encontram aspectos problemáticos. Ao contrário, há maior acordo sobre a possibilidade de um processo canónico sumário nos casos de nulidade patente.

A propósito da relevância da fé pessoal dos nubentes para a validade do consenso, evidenciam-se uma convergência a respeito da importância da questão e uma variedade de abordagens no seu aprofundamento.

A preparação dos agentes e o incremento dos tribunais

116. (49) A propósito das causas matrimoniais, a simplificação do procedimento, exigida por muitos, além da preparação de suficientes agentes, clérigos e leigos com dedicação prioritária, requer que se realce a responsabilidade do bispo diocesano, que na sua diocese poderia encarregar consultores devidamente preparados, para aconselhar gratuitamente as partes interessadas sobre a validade do próprio matrimónio. Esta função pode ser desempenhada por um gabinete ou por pessoas qualificadas (cf. DC, art. 113, 1).

117. Apresenta-se a proposta de que em cada Diocese sejam garantidos, de maneira gratuita, os serviços de informação, consulta e mediação ligados à pastoral familiar, de maneira especial à disposição de pessoas separadas ou de casais em crise. Um serviço qualificado desta forma ajudaria as pessoas a empreender o percurso judicial, que na história da Igreja constitui o caminho de discernimento mais acreditado para verificar a validade real do matrimónio. Além disso, de várias partes pedem-se um incremento e uma maior descentralização dos tribunais eclesiásticos, dotando-os de pessoal qualificado e competente.

Linhas pastorais comuns

118. (50) As pessoas divorciadas mas não recasadas, que muitas vezes são testemunhas da fidelidade matrimonial, devem ser animadas a encontrar na Eucaristia o alimento que as sustente na sua condição. A comunidade local e os Pastores devem acompanhar estas pessoas com solicitude, sobretudo quando elas tiverem filhos ou a sua situação de pobreza for grave.

119. Em conformidade com diversas sugestões, a atenção aos casos concretos deve ser conjugada com a necessidade de promover linhas pastorais comuns. A sua falta contribui para aumentar a confusão e a divisão, enquanto causa um sofrimento lancinante em quantos vivem o fracasso do matrimónio e que às vezes se sentem injustamente julgados. Por exemplo, salienta-se que alguns fiéis separados, que não vivem numa nova união, consideram pecaminosa a sua própria separação, abstendo-se portanto de receber os sacramentos. Além disso, verificam-se casos de divorciados recasados civilmente que, encontrando-se a viver em continência por vários motivos, não sabem que podem aproximar-se dos sacramentos num lugar em que a sua condição não é conhecida. Depois, há situações de uniões irregulares de pessoas que, no foro interno, escolheram o caminho da continência e por conseguinte podem aceder aos sacramentos, tendo o cuidado para não suscitar escândalo. Trata-se de exemplos que confirmam a necessidade de oferecer indicações claras por parte da Igreja, a fim de que os seus filhos que se encontram em situações particulares não se sintam discriminados.

A integração dos divorciados recasados civilmente na comunidade cristã

120. (51) Também as situações dos divorciados recasados exigem um discernimento atento e um acompanhamento de grande respeito, evitando qualquer linguagem e atitude que os faça sentir discriminados e promovendo a sua participação na vida da comunidade. Cuidar deles não é, para a comunidade cristã, uma debilitação da sua fé e do seu testemunho a propósito da indissolubilidade matrimonial mas, ao contrário, precisamente neste cuidado ela exprime a sua caridade.

121. Pede-se de muitas partes que a atenção e o acompanhamento em relação aos divorciados recasados civilmente se orientem para uma sua integração cada vez maior na vida da comunidade cristã, tendo em consideração a diversidade das situações na sua origem. Não obstante as sugestões contidas no n. 84 da Familiaris Consortio, devem ser reconsideradas as formas de exclusão actualmente praticadas nos campos litúrgico-pastoral, educativo e caritativo. Dado que estes fiéis não se encontram fora da Igreja, propõe-se que se medite sobre a oportunidade de eliminar estas exclusões. Além disso, sempre para favorecer uma sua maior integração na comunidade cristã, é preciso prestar uma atenção específica aos seus filhos, considerando o papel educativo insubstituível dos pais, em virtude do interesse preeminente pelo menor.

É bom que estes caminhos de integração pastoral dos divorciados recasados civilmente sejam precedidos por um discernimento oportuno da parte dos pastores, a respeito da irreversibilidade da situação e da vida de fé do casal em uma nova união, e sejam acompanhados por uma sensibilização da comunidade cristã em vista do acolhimento das pessoas interessadas, realizando-se segundo uma lei de graduação (cf. FC, 34), no respeito pelo amadurecimento das consciências.

O caminho penitencial

122. (52) Refletiu-se sobre a possibilidade de que os divorciados e recasados acedam aos sacramentos da Penitência e da Eucaristia. Diversos Padres sinodais insistiram a favor da disciplina atualmente em vigor, em virtude da relação constitutiva entre a participação na Eucaristia e a comunhão com a Igreja e o seu ensinamento sobre o matrimónio indissolúvel. Outros manifestaram-se a favor de um acolhimento não generalizado na mesa eucarística, nalgumas situações particulares e em condições muito específicas, sobretudo quando se trata de casos irreversíveis e ligados a obrigações morais em relação aos filhos, que viriam a padecer sofrimentos injustos. O eventual acesso aos sacramentos deveria ser precedido por um caminho penitencial, sob a responsabilidade do bispo diocesano. Esta questão ainda deve ser aprofundada, tendo perfeitamente presente a distinção entre situação objetiva de pecado e circunstâncias atenuantes, uma vez que «a imputabilidade e a responsabilidade de um ato podem ser diminuídas, e até anuladas» por diversos «fatores psíquicos ou sociais» (CIC, 1735).

123. Para enfrentar a supramencionada temática, existe um comum acordo acerca da hipótese de um itinerário de reconciliação ou caminho penitencial, sob a autoridade do Bispo, para os fiéis divorciados recasados civilmente, que se encontram em situação de convivência irreversível. Com referência ao n. 84 da Familiaris Consortio, sugere-se um percurso de tomada de consciência acerca do fracasso e das feridas por ele causadas, com arrependimento, averiguação da eventual nulidade do matrimónio, compromisso na comunhão espiritual e decisão de viver em continência.

Outros, por caminho penitencial entendem um processo de esclarecimento e de nova orientação, depois do fracasso vivido, acompanhado por um presbítero para isto deputado. Este processo deveria levar o interessado a um juízo honesto sobre a sua condição, na qual também o próprio presbítero possa amadurecer uma sua avaliação para poder recorrer ao poder de ligar e de desligar, de modo adequado à situação.

Em ordem ao aprofundamento a respeito da situação objectiva de pecado e da imputabilidade moral, alguns sugerem que se tenha em consideração a Carta aos Bispos da Igreja católica acerca da recepção da Comunhão eucarística por parte de fiéis divorciados recasados, da Congregação para a Doutrina da Fé (14 de Setembro de 1994) e a Declaração acerca da admissibilidade à Sagrada Comunhão dos divorciados recasados, do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos (24 de Junho de 2000).

A participação espiritual na comunhão eclesial

124. (53) Alguns Padres sinodais afirmaram que as pessoas divorciadas e recasadas ou conviventes podem recorrer frutuosamente à comunhão espiritual. Outros interrogaram-se, então, por que motivo não podem aceder à comunhão sacramental. Além disso, solicita-se um aprofundamento desta temática, capaz de fazer sobressair a peculiaridade das duas formas e o seu nexo com a teologia do matrimónio.

125. O caminho eclesial de incorporação a Cristo encetado com o Baptismo, também para os fiéis divorciados e recasados, realiza-se gradualmente, através da conversão contínua. Neste percurso, são diversas as modalidades mediante as quais eles estão convidados a conformar a sua vida ao Senhor Jesus que, com a sua graça, os preserva na comunhão eclesial. Como sugere novamente o n. 84 da Familiaris Consortio, entre estas formas de participação recomendam-se a escuta da Palavra de Deus, a participação na celebração eucarística, a perseverança na oração, as obras de caridade, as iniciativas comunitárias a favor da justiça, a educação dos filhos na fé e o espírito de penitência, tudo corroborado pela oração e pelo testemunho hospitaleiro da Igreja. Fruto desta participação é a comunhão do crente com a comunidade inteira, expressão da inserção real no Corpo eclesial de Cristo. No que se refere à comunhão espiritual, é necessário recordar que ela pressupõe a conversão e o estado de graça, e está ligada à comunhão sacramental.

Matrimónios mistos e com disparidade de culto

126. (54) As problemáticas relativas aos matrimónios mistos apresentaram-se com frequência nas intervenções dos Padres sinodais. Em determinados contextos, a diversidade da disciplina matrimonial das Igrejas ortodoxas levanta problemas sobre os quais é necessário ponderar em âmbito ecuménico. Analogamente, para os matrimónios inter-religiosos, será importante a contribuição do diálogo com as religiões.

127. Os matrimónios mistos e os matrimónios com disparidade de culto apresentam múltiplos aspectos de criticidade e de difícil solução, não tanto a nível normativo como no plano pastoral. Vejam-se, por exemplo, a problemática da educação religiosa dos filhos; a participação na vida litúrgica do cônjuge, no caso de matrimónios mistos com baptizados de outras confissões cristãs; a partilha de experiências espirituais com o cônjuge pertencente a uma outra religião ou até não crente em busca. Por conseguinte, seria preciso elaborar um código de boa conduta, de tal modo que nenhum cônjuge seja um obstáculo no caminho de fé do outro. Por isso, com a finalidade de enfrentar de maneira construtiva as diversidades em ordem à fé, é necessário prestar uma atenção especial às pessoas que se unem em tais matrimónios, e não somente no período precedente às núpcias.

128. Alguns sugerem que os matrimónios mistos sejam considerados entre os casos de «grave necessidade», nos quais é possível que pessoas baptizadas fora da plena comunhão com a Igreja católica, que no entanto compartilham com ela a fé acerca da Eucaristia, sejam admitidas à recepção de tal sacramento, na falta de pastores que lhes sejam próprios (cf. EdE, 45-46; Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Directório para a Aplicação dos Princípios e das Normas para o Ecumenismo, 25 de Março de 1993, 122-128), tendo em consideração também critérios próprios da comunidade eclesial à qual pertencem.

A peculiaridade da tradição ortodoxa

129. A referência que alguns fazem à prática matrimonial das Igrejas ortodoxas deve ter em consideração a diversidade do conceito teológico de núpcias. Na Ortodoxia existe a tendência a incluir a prática de abençoar as segundas uniões na noção de «economia» (oikonomia), entendida como condescendência pastoral em relação aos matrimónios malogrados, sem pôr em discussão o ideal da monogamia absoluta, ou seja, da unicidade do matrimónio. Esta bênção é por si só uma celebração penitencial para invocar a graça do Espírito Santo, a fim de que purifique da debilidade humana e volte a inserir os penitentes na comunhão com a Igreja.

A atenção pastoral às pessoas com tendência homossexual

130. (55) Algumas famílias vivem a experiência de ter no seu interior pessoas com orientação homossexual. A este propósito, houve interrogações sobre qual atenção pastoral é oportuna diante desta situação, com relação àquilo que a Igreja ensina: «Não existe fundamento algum para equiparar ou estabelecer analogias, mesmo remotas, entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimónio e a família». Não obstante, os homens e as mulheres com tendências homossexuais devem ser acolhidos com respeito e delicadeza. «Deve evitar-se, para com eles, qualquer atitude de injusta discriminação» (Congregação para a Doutrina da Fé, Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais, 4).

131. Reitera-se que cada pessoa, independentemente da sua tendência sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e recebida com sensibilidade e delicadeza, tanto na Igreja como na sociedade. Seria desejável que os programas pastorais diocesanos reservassem uma atenção específica ao acompanhamento das famílias em que vivem pessoas com tendência homossexual, bem como destas próprias pessoas.

132. (56) É totalmente inaceitável que os Pastores da Igreja sofram pressões nesta matéria e que os organismos internacionais condicionem as ajudas financeiras aos países pobres à introdução de leis que instituam o «matrimónio» entre pessoas do mesmo sexo.

Capítulo IV

Família, generatividade, educação

A transmissão da vida e o desafio da diminuição da natalidade

133. (57) Não é difícil constatar o difundir-se de uma mentalidade que reduz a geração da vida a uma variável da projeção individual ou conjugal. Os fatores de ordem económica exercem uma pressão por vezes determinante, contribuindo para a forte diminuição da natalidade, que debilita o tecido social, compromete a relação entre as gerações e torna mais incerto o olhar sobre o futuro. A abertura à vida é exigência intrínseca do amor conjugal. Nesta perspetiva, a Igreja sustém as famílias que aceitam, educam e circundam de carinho os filhos portadores de deficiência.

134. Recordou-se que é necessário continuar a divulgar os documentos do Magistério da Igreja que promovem a cultura da vida perante a cultura da morte, cada vez mais difundida. Sublinha-se a importância de alguns centros que realizam pesquisas sobre a fertilidade e a infertilidade humana, favorecendo assim o diálogo entre bioeticistas católicos e cientistas das tecnologias biomédicas. A pastoral familiar deveria comprometer em maior medida os especialistas católicos em matéria biomédica nos percursos de preparação para o matrimónio e no acompanhamento dos cônjuges.

135. É urgente que os cristãos comprometidos na política fomentem opções legislativas adequadas e responsáveis em ordem à promoção e à defesa da vida. Do mesmo modo como a voz da Igreja se faz ouvir a nível sociopolítico, a respeito destes temas, assim é necessário também que se multipliquem os esforços para se pôr de acordo com os organismos internacionais e nas instâncias decisórias no campo político, tendo em vista a finalidade de promover o respeito pela vida humana, desde a concepção até à morte natural, com atenção particular às famílias com filhos portadores de deficiência.

A responsabilidade generativa

136. (58) Também neste âmbito é preciso começar a partir da escuta das pessoas e explicar a beleza e a verdade de uma abertura incondicional à vida, como aquilo de que o amor tem necessidade para ser vivido em plenitude. É sobre esta base que pode apoiar-se um ensinamento adequado a respeito dos métodos naturais para a procriação responsável. Ele ajuda a viver de maneira harmoniosa e consciente a comunhão entre os cônjuges, em todas as suas dimensões, juntamente com a responsabilidade generativa. É oportuno voltar a descobrir a mensagem da Encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI, que ressalta a necessidade de respeitar a dignidade da pessoa na avaliação moral dos métodos de regulação da natalidade. A adoção de crianças, órfãs e abandonadas, recebidas como se fossem filhos naturais, é uma forma específica de apostolado familiar (cf. AA, 11), muitas vezes evocada e encorajada pelo magistério (cf. FC, 41; Evangelium Vitae, 93). A escolha da adoção e da guarda de uma criança manifesta uma fecundidade particular da experiência conjugal, e não apenas quando ela é marcada pela esterilidade. Tal opção constitui um sinal eloquente do amor familiar, uma ocasião para dar testemunho da própria fé e restituir dignidade filial a quantos dela foram privados.

137. Tendo presente a riqueza de sabedoria contida na Humanae Vitae, em relação às questões por ela abordadas, sobressaem dois pólos que se devem conjugar constantemente. Por um lado, o papel da consciência entendida como voz de Deus que ressoa no coração humano educado a ouvi-la; por outro, a indicação moral objectiva, que impede a consideração da generatividade como uma realidade sobre a qual decidir arbitrariamente, prescindindo do desígnio divino sobre a procriação humana. Quando prevalece a referência ao pólo subjectivo, corre-se facilmente o risco de fazer escolhas egoístas; no outro caso, a norma moral é sentida como um peso insuportável, que não corresponde às exigências e nem às possibilidades da pessoa. A conjugação destes dois aspectos, vivida com o acompanhamento de um guia espiritual competente, poderá ajudar os cônjuges a fazer escolhas plenamente humanizadoras, em conformidade com a vontade do Senhor.

Adopção e acolhimento

138. Para dar uma família a numerosas crianças abandonadas, muitos pediram que se ponha em maior evidência a importância da adopção e do acolhimento. A este propósito, salientou-se a necessidade de afirmar que a educação de um filho deve basear-se na diferença sexual, do mesmo modo como a procriação. Portanto, também ela tem o seu fundamento no amor conjugal entre um homem e uma mulher, que constitui a base indispensável para a formação integral da criança.

Nas situações em que, às vezes, o filho é desejado «para nós mesmos» e custe o que custar – como se fosse um prolongamento dos próprios desejos – a adopção e o acolhimento correctamente entendidos põem em evidência um aspecto importante da genitorialidade e da filiação, enquanto ajudam a reconhecer que os filhos, tanto naturais como adoptados ou acolhidos, são «diversos de nós» e é necessário recebê-los, amá-los, cuidar deles, e não apenas «pô-los no mundo».

Tendo como ponto de partida estes pressupostos, a realidade da adopção e do acolhimento deve ser valorizada e aprofundada, também no contexto da teologia do matrimónio e da família.

A vida humana mistério intangível

139. (59) É necessário ajudar a viver a afetividade, inclusive no vínculo conjugal, como um caminho de amadurecimento, na aceitação cada vez mais profunda do outro e numa doação sempre mais plena. Neste sentido, é oportuno reiterar a necessidade de propor caminhos formativos que alimentem a vida conjugal e a importância de um laicado que ofereça um acompanhamento feito de testemunho vivo. É de grande ajuda o exemplo de um amor fiel e profundo, feito de ternura e respeito, capaz de crescer no tempo e que, no seu abrir-se concreto à geração da vida, faz a experiência de um mistério que nos transcende.

140. A vida é dom de Deus e mistério que nos transcende. Por isso, não se devem de modo algum «descartar» os seus inícios e a sua fase terminal. Pelo contrário, é necessário assegurar a estas fases uma atenção especial. Hoje em dia, com demasiada facilidade, «o ser humano é considerado em si mesmo como um bem de consumo, que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do “descartável”, que aliás chega a ser promovida» (EG, 53). A este propósito é tarefa da família, coadjuvada pela sociedade inteira, receber a vida nascente e cuidar dela na sua última fase.

141. Em relação ao drama do aborto, a Igreja afirma antes de tudo a índole sagrada e inviolável da vida humana, comprometendo-se concretamente a favor dela. Graças às suas instituições, oferece aconselhamento às gestantes, ajuda as mães solteiras, assiste as crianças abandonadas e permanece próxima de quantos sofreram o aborto. Àqueles que trabalham nas estruturas de assistência à saúde, recorda-se a obrigação moral da objecção de consciência.

Do mesmo modo, a Igreja não apenas sente a urgência de afirmar o direito à morte natural, evitando o excesso terapêutico e a eutanásia, mas também cuida dos idosos, protege as pessoas portadoras de deficiência, assiste os doentes terminais e conforta os moribundos.

O desafio da educação e o papel da família na evangelização

142. (60) Um dos desafios fundamentais diante do qual se encontram as famílias de hoje é sem dúvida o educativo, que se tornou ainda mais exigente e complexo por causa da realidade cultural contemporânea e da grande influência dos meios de comunicação. É preciso ter na devida consideração as exigências e as expectativas de famílias capazes de ser, na vida quotidiana, lugares de crescimento, de transmissão concreta e essencial das virtudes que forjam a existência. Isto indica que os pais podem escolher livremente o tipo de educação que desejam oferecer aos filhos, em conformidade com as convicções que lhes são próprias.

143. Há consenso unânime em confirmar que a primeira escola de educação é a família, e que a comunidade cristã serve de ajuda e de promoção da integração deste papel formativo insubstituível. De várias partes considera-se necessário encontrar espaços e momentos de encontro para encorajar a formação dos pais e a partilha de experiências entre famílias. É importante que os pais se comprometam concretamente nos caminhos de preparação para os sacramentos da iniciação cristã, em qualidade de primeiros educadores e testemunhas de fé para os seus filhos.

144. Nas diversas culturas, os adultos da família desempenham uma função educativa insubstituível. No entanto, em muitos contextos continuamos a assistir a um enfraquecimento progressivo do papel educativo dos pais, devido a uma presença invasiva dos meios de comunicação no interior da esfera familiar, mas também por causa da tendência a delegar esta tarefa a terceiros. Pede-se que a Igreja encoraje e assista as famílias na sua obra de participação vigilante e responsável nos programas escolares e educativos que dizem respeito aos seus filhos.

145. (61) A Igreja desempenha um precioso papel de apoio às famílias, começando pela iniciação cristã, através de comunidades acolhedoras. Pede-se-lhe, hoje mais do que ontem, tanto nas situações complexas como nas normais, que ajude os pais no seu compromisso educacional, acompanhando as crianças, os adolescentes e os jovens no seu crescimento, ao longo de caminhos personalizados que sejam capazes de os introduzir no pleno sentido da vida e de suscitar escolhas e responsabilidades, vividas à luz do Evangelho. Na sua ternura, misericórdia e sensibilidade maternal, Maria pode saciar a fome de humanidade e de vida, e por este motivo é invocada pelas famílias e pelo povo cristão. A pastoral e a devoção mariana constituem um ponto de partida oportuno para anunciar o Evangelho da família.

146. Compete à família cristã o dever de transmitir a fé aos próprios filhos, fundado no compromisso assumido na celebração do matrimónio. Ele deve ser desempenhado ao longo da vida familiar, com o apoio da comunidade cristã. De modo particular, as circunstâncias da preparação dos filhos para os sacramentos da iniciação cristã são preciosas ocasiões de uma nova descoberta da fé por parte dos pais, que voltam ao fundamento da sua vocação cristã, reconhecendo em Deus a nascente do seu amor, que Ele consagrou mediante o sacramento nupcial.

O papel dos avós na transmissão da fé e das práticas religiosas não deve ser esquecido: eles são apóstolos insubstituíveis nas famílias, com o conselho sábio, a oração e o bom exemplo. A participação na liturgia dominical, a escuta da Palavra de Deus, a frequência dos sacramentos e a caridade vivida levarão os pais a dar um testemunho claro e credível de Cristo aos seus próprios filhos.

CONCLUSÃO

147. O presente «Instrumentum Laboris» é fruto do caminho intersinodal, brotado da criatividade pastoral do Papa Francisco que, em coincidência com o quinquagésimo aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II e da instituição do Sínodo dos Bispos por parte do Beato Paulo VI, convocou à distância de um ano duas Assembleias sinodais diferentes sobre o mesmo tema. Se a III Assembleia Geral Extraordinária do Outono de 2014 ajudou a Igreja inteira a focalizar «Os desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização», a XIV Assembleia Geral Ordinária, programada para o mês de Outubro de 2015, será chamada a meditar sobre «A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo». Também não se pode esquecer que a celebração do próximo Sínodo se situa à luz do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, proclamado pelo Papa Francisco, que terá início no dia 8 de Dezembro de 2015.

Também neste caso, o elevado número de contribuições enviadas à Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos demonstrou o interesse extraordinário e a participação concreta de todos os componentes do Povo de Deus. Embora a síntese proposta não possa demonstrar plenamente a riqueza do material enviado de todos os continentes, contudo o texto consegue oferecer um reflexo confiável da noção e das expectativas da Igreja inteira sobre o tema crucial da família.

Confiemos os trabalhos da próxima Assembleia sinodal à Sagrada Família de Nazaré, que «nos compromete a redescobrir a vocação e a missão da família» (Francisco, Audiência geral, 17 de Dezembro de 2014).

Oração à Sagrada Família

Jesus, Maria e José,
em vós contemplamos
o esplendor do verdadeiro amor;
a Vós, com confiança, nos dirigimos.

Sagrada Família de Nazaré,
tornai também as nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos de oração,
escolas autênticas do Evangelho
e pequenas Igrejas domésticas.

Sagrada Família de Nazaré,
que nunca mais se faça, nas famílias, experiência
de violência, egoísmo e divisão:
quem ficou ferido ou escandalizado
depressa conheça consolação e cura.

Sagrada Família de Nazaré,
que o próximo Sínodo dos Bispos
possa despertar, em todos, a consciência
do caráter sagrado e inviolável da família,
a sua beleza no projeto de Deus.

Jesus, Maria e José,
escutai, atendei a nossa súplica.

 


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