Senhor Presidente
Hoje, é verdadeiramente oportuno que a Assembleia Geral aborde o tema da "Cultura da Paz". De repente, a paz imperfeita com que o nosso mundo convive foi ameaçada por ataques violentos e insensatos contra seres humanos inocentes. Uma reacção inicial pode provir com palavras de guerra e não com uma linguagem de paz, de compreensão e de reconciliação. Contudo, às instituições como a Organização das Nações Unidas são confiadas as mais sérias responsabilidades, em ordem a fazer com que "mantenha a paz e a segurança internacionais, com o seguinte objectivo: tomar eficazes medidas colectivas para a prevenção e a eliminação das ameaças contra a paz..." (Carta da Organização das Nações Unidas, cap. 1, art. 1 1).
A paz começa nos corações. Não é simplesmente a ausência da guerra, nem é promovida apenas para evitar o conflito mais vasto mas, ao contrário, ajuda a orientar o nosso raciocínio e as nossas acções para o bem de todos. Ela torna-se uma filosofia de acção que nos torna a todos responsáveis pelo bem comum e nos obriga a dedicar todos os nossos esforços para a sua causa.
Se, por estes motivos, estamos convencidos de que a paz é um "bem em si mesmo", devemos edificar uma cultura da paz. Em primeiro lugar, a paz é conhecida, reconhecida, desejada e amada no coração. Depois, em ordem a estabelecer uma cultura da paz, deve ser expressa e impressa na humanidade, na sua filosofia, sociologia, política e tradições.
Existem numerosas definições da palavra "cultura" que, segundo a minha Delegação, oferecem um bom ponto de partida para o nosso debate deste dia. A primeira fala da cultura como da "arte ou prática de cultivar"; outra, define a cultura como "a medida total do comportamento humano e dos seus produtos, inseridos no pensamento, na linguagem, na acção e nos artefactos do homem, e dependente da capacidade humana de aprender e de transmitir a ciência às gerações vindouras através da utilização dos instrumentos, das linguagens e dos sistemas do pensamento abstracto".
Juntas, ambas estas definições parecem oferecer um fundamento para uma melhor compreensão da cultura... e, inserida no contexto deste debate, "a cultura da paz" pode ser vista como "o padrão do comportamento humano que há-de ser cultivado e transmitido às gerações futuras".
Quando chegarmos a uma compreensão do conceito da cultura da paz, começaremos a ponderar sobre os modos de comunicar esta compreensão e de promover o seu lugar na mente e no coração da humanidade.
O estabelecimento de uma cultura da paz e da não-violência exigirá uma nova linguagem e renovados gestos de promoção da paz. Nesta busca, não só educaremos a nova geração, mas também nos educaremos a nós mesmos para a paz, despertando no nosso ser convicções firmes e uma nova capacidade de alimentar a aspiração à paz e à não-violência, que constituem uma parte essencial de cada ser humano.
Naturalmente, tudo isto faz parte do trabalho em que a Organização das Nações Unidas e os povos do mundo inteiro estão comprometidos desde há muitos anos. Trata-se de um processo permanente, que é impedido por numerosos obstáculos que continuam a resistir ao movimento em favor de uma paz verdadeira e duradoura para todos os povos.
No mundo contemporâneo existem situações de conflito onde uma solução justa foi rejeitada ao longo dos anos, por ambas as partes interessadas. E isto tem criado sentimentos de frustração, de ódio e de tentações de vingança, que todos devem ter em conta. As pessoas que honram a Deus devem ocupar a linha de vanguarda entre aqueles que lutam contra todas as formas de terrorismo. Como o Papa João Paulo II disse, ao encontrar os líderes religiosos em Jerusalém: "Se for autêntica, a devoção a Deus implica necessariamente a atenção para com os outros seres humanos. Como membros da única família humana e amados filhos de Deus, temos deveres recíprocos que, como crentes, não podemos ignorar" (Discurso durante o encontro inter-religioso no Pontifício Instituto "Notre-Dame", 23 de Março de 2000, em: ed. port. de L'Osservatore Romano de 1 de Abril de 2000, pág. 5, n. 3).
O Santo Padre voltou a falar sobre esta mesma ideia no passado mês de Janeiro, quando afirmou: "Todos sabem como é difícil harmonizar as razões dos contendentes, quando os ânimos estão acesos e exasperados por causa de ódios antigos e de graves problemas que tardam a encontrar solução. Mas, não menos perigosa seria, para o futuro da paz, a incapacidade de enfrentar sabiamente os problemas apresentados pela nova configuração que a humanidade está a assumir, em muitos países, devido à aceleração dos processos migratórios e da convivência inédita que daí resulta entre pessoas de cultura e civilização diversas" (Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1 de Janeiro de 2001, n. 2).
Os actos de vingança não curarão estes ódios. Represálias, que atingem indiscriminadamente as pessoas inocentes, dão continuidade à espiral da violência e constituem soluções ilusórias que impedem o isolamento moral dos terroristas. Pelo contrário, nós devemos eliminar os elementos mais óbvios que alimentam as condições para o ódio e a violência e que são opostos a qualquer movimento em ordem à paz. A pobreza, acompanhada de outras situações de marginalização que limitam a vida de inúmeros povos do mundo, inclusivamente a negação da dignidade humana, a falta de respeito pelos direitos do homem e as suas liberdades fundamentais, a marginalização social, as situações intoleráveis em que vivem os refugiados, as deslocações internas e externas, assim como a opressão física ou psicológica constituem terrenos férteis que só esperam ser ser explorados pelos terroristas.
Qualquer campanha séria contra o terrorismo também tem necessidade de considerar as condições sociais, económicas e políticas que alimentam a manifestação do terrorismo, da violência e do conflito em geral.
No meio da tragédia do nosso tempo e da ameaça contra a "Cultura da Paz", não podemos esquecer-nos das modalidades do terrorismo sistemático. Nalguns casos, ele é como que institucionalizado, eventualmente assente sobre sistemas que alienam totalmente a liberdade e os direitos dos indivíduos, "culpados" de não harmonizarem o seu próprio pensamento com a ideologia triunfadora. Hoje, estas pessoas são incapazes de conquistar a atenção e a condescendência da opinião pública internacional e, por isso, não devem ser esquecidas nem abandonadas.
Nesta luz, o mundo deve reconhecer que ainda existe esperança. A edificação da paz não é algo irracional ou um sonho utópico. Pelo contrário, é uma realidade possível que, embora esteja fora do nosso alcance, é uma meta meritória e realizável.
O Papa João Paulo II, sempre considerou a ideia desta busca da paz como um tema fundamental.
As suas exortações reiteraram-se, de modo especial e com maior frequência, durante os últimos dois anos, como parte integrante do grande Jubileu. Numa homilia pronunciada durante a sua viagem à Jordânia, o Santo Padre exortou todas as mães a ser "edificadoras de uma nova civilização do amor. Amai as vossas famílias. Ensinai-lhes a dignidade de toda a vida; ensinai-lhes as vias da harmonia e da paz" (Homilia no Estádio de Amã, 21 de Março de 2000, em: ed. port. de L'Osservatore Romano de 25/3/2000, pág. 6, n. 5).
Mais recentemente, João Paulo II recordou aos jovens do Cazaquistão que deveriam sentir-se "chamados a ser artífices de um mundo melhor. Sede operadores de paz, porque uma sociedade firmemente fundada na paz tem diante de si o futuro!" (Discurso aos jovens, na Universidade "Eurásia", em Astana, 23 de Setembro de 2001, em: ed. port. de L'osservatore Romano de 29/9/2001, pág. 8, n. 1).
Enfim, Senhor Presidente, gostaria de concluir com as palavras do Papa João Paulo II, pronunciadas há quase vinte anos, que parecem muito oportunas para o nosso debate de hoje:
"Apresento-vos esta Mensagem... subordinada ao tema: "O diálogo para a paz, um desafio para o nosso tempo". Dirijo-a a todos aqueles que, de alguma maneira, são responsáveis pela paz: àqueles que presidem ao destino dos povos, aos funcionários internacionais, aos homens políticos, aos diplomatas e, ainda, aos cidadãos de cada nação. Todos, efectivamente, são interpelados pela necessidade de preparar uma paz verdadeira, de a manter ou de a restabelecer sobre bases sólidas e justas. Ora, estou profundamente convencido de que o diálogo o verdadeiro diálogo é uma condição essencial de uma paz como esta. Este diálogo é necessário e não somente oportuno; ele apresenta-se difícil, mas é possível, apesar dos obstáculos que o realismo nos obriga a ter em consideração. Ele constitui, pois, um verdadeiro desafio, que vos convido a aceitar. E faço-o, sem qualquer outro intuito, que não seja o de contribuir, eu próprio e a Santa Sé, para a paz, tomando muito a peito o destino da humanidade, como herdeiro e primeiro responsável da mensagem de Cristo, que é acima de tudo uma mensagem de Paz para todos os homens" (Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1 de Janeiro de 1983, n. 1).
Obrigado, Senhor Presidente!