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ENTREVISTA CONCEDIDA PELO CARDEAL TARCISIO BERTONE
 AO «L'OSSERVATORE ROMANO», RÁDIO VATICANO
 E CENTRO TELEVISIVO VATICANO
SOBRE A VIAGEM AO MÉXICO POR OCASIÃO
DO VI ENCONTRO MUNDIAL DAS FAMÍLIAS
 

 

PERGUNTA: Eminência, a sua visita ao México mostrou-se totalmente diferente das outras viagens precedentes:  além da sua participação como legado do Papa, teve-se a impressão de um novo início de relações entre  a  Igreja,  a  Santa  Sé  e  a  sociedade  mexicana. O que aconteceu verdadeiramente?
CARDEAL TARCISIO BERTONE: Foi uma viagem que teve um realce pastoral como legado papal para o sexto Encontro mundial das famílias e também político, naturalmente, nos encontros com o presidente da República e com outras autoridades. É preciso recordar que já nestes últimos tempos tinha ido ao México D. Dominique Mamberti, por ocasião do décimo quinto aniversário da retomada das relações diplomáticas, uma grande mudança do México, que João Paulo II tinha marcado com uma etapa em 1993 por ocasião da sua viagem para a Jornada Mundial da Juventude em Denver. Agora, o secretário de Estado foi ao México como legado papal, mas também como secretário de Estado, e ressaltou precisamente esta retomada de relações positivas. Não se trata ainda de laicidade positiva este tema foi discutido no encontro em Querétaro mas de encontros e de relações mais positivos no México entre o Estado e a Igreja. Uma Igreja em grande retomada, uma Igreja mártir como a do México. Tratou-se de uma ocasião excepcional na qual o Papa se tornou presente com as duas mensagens, com a sua bênção videoregistrada, e na qual ressoou o insistente e jubiloso refrão dos mexicanos:  "Está presente o legado papal, mas Bento está aqui, está presente:  Bento está aqui presente". É uma convicção que expressava um grande desejo da presença do Papa mas também o sentido de plena comunhão e de presença com o Papa, com o Bispo de Roma.

PERGUNTA: Família e cultura foram os dois pólos de maior atenção nas suas diversas intervenções. Por que tanta atenção demonstrada ao falar quer da família quer da cultura?
CARDEAL TARCISIO BERTONE: Porque, na realidade, a família é a primeira agência de transmissão dos valores e da cultura para as novas gerações, para as crianças, para os jovens em crescimento:  família transmitidora de valores. É um dado confirmado, mesmo com todas as dificuldades que marcam o caminho, a experiência da vida familiar, não só na Europa mas também na América Latina. Recordo uma conferência, um debate que fizemos aqui em Roma, na basílica de São João de Latrão, com o professor Barbiellini Amidei, precisamente sobre a família capaz ou incapaz hoje, diante de todas as outras agências, de socializar, de transmitir valores, e concordámos e esta é uma convicção dos Papas:  de João Paulo II, do Papa Bento XVI de modo particular, reafirmada também nas duas mensagens dirigidas ao México que a família é a primeira protagonista na transmissão de valores, a primeira na formação humana e cristã. Ela transmite a identidade:  a identidade própria da família, a identidade cultural, espiritual, moral de um povo. O Estado depois nasce do conjunto, da comunhão das famílias, e o Estado deve ter esta missão de consolidar o sentido de identidade de um povo fundado sobre as próprias raízes, sobre as origens que determinaram o desenvolvimento quer de uma comunidade política quer da comunidade eclesial.

PERGUNTA: De  certa  forma,  pareceu  que  Vossa Eminência  encorajou  uma  refundação da cultura católica mexicana. Com que objectivo?
CARDEAL TARCISIO BERTONE: Houve no México grandes tradições culturais:  há muitas universidades, instituições educativas e há o risco que estas realidades, que renasceram depois de um espaço de liberdade dado de novo à Igreja, permaneçam ainda num ângulo. Há uma grande marca de laicismo, existem forças que se contrapõem à Igreja, que contrastam com a missão educativa, a missão formadora da Igreja, com a função de fazer cultura da Igreja. Recordamos que a Igreja inventou, criou as universidades; elas nasceram do seio da Igreja, e no México dizem que há mais de duas mil universidades estatais e privadas:  são muitas as universidades católicas, pertencentes também a institutos religiosos. Elas são um recurso imenso que se deve desalfandegar por assim dizer e tornar presente e activo, de modo que possa incidir sobre a cultura do povo e demonstrar que também as universidades de matriz católica e de inspiração católica eis o problema da evangelização da cultura podem realizar, fazer progredir a ciência e portanto criar novos âmbitos, novas formas de desenvolvimento cultural, precisamente em concreto para a Nação mexicana. Por isso procurei encorajar este progresso e dar este estímulo.

PERGUNTA: No encontro com o mundo da cultura e da educação, Vossa Eminência insistiu sobre o sucesso limitado da cultura católica no México do último século. Não é um juízo duro, na presença de uma Igreja que sofreu uma perseguição até sanguinolenta?
CARDEAL TARCISIO BERTONE: Na realidade, é um juízo duro. Citei exactamente um autor, Gabriel Zaid, o qual recordou a relação com um bispo europeu que lhe perguntava:  "Mas, no México é possível ter uma cultura católica ou uma influência cultural da parte da Igreja católica?". Quando este bispo europeu, que era holandês, lhe perguntou o que se podia esperar do México, Zaid desolado confessou:  "Não lhe podeis dar a mínima esperança". No México, além dos vestígios dos tempos melhores e da cultura popular, a cultura católica tinha terminado. Observai que estamos nos anos setenta. Tinha permanecido à margem, num dos séculos mais importantes da cultura mexicana:  o século XX. Como pôde acontecer isto? Responde Zaid:  "Ainda me faço esta pergunta!". Este diagnóstico certamente é pessimista:  revelei-o porque certamente houve impulsos e motivos muito significativos, e seria injusto ressaltar, subscrever integralmente este diagnóstico. Contudo, a observação do escritor e a pergunta deste bispo exigem respostas, são estimulantes. Que a cultura seja necessária na obra da Igreja e ainda mais na da própria humanidade, tinha afirmado num grande discurso à UNESCO o Papa João Paulo II, quando gritei:  "O futuro do homem depende da cultura! A paz do mundo depende da primazia do espírito! O futuro pacífico da humanidade depende do amor". Portanto pôs em correlação cultura, paz, amor. Para a Igreja, a promoção cultural é uma realidade conatural, está inscrita no seu ADN , na sua história:  é uma exigência urgente, necessária. Pelo mesmo facto de que o Evangelho é por si mesmo criador de cultura e portanto o anúncio do Evangelho é criação de cultura. Na realidade, a Igreja mexicana foi muito perseguida, teve tantos mártires. Recebi e venerei a relíquia de um jovem de 15 anos, mais maduro de quanto pudesse demonstrar a sua idade, José Sánchez del Río, que participou num círculo cultural da Acção Católica; tão jovem, foi preso, capturado e depois massacrado, e antes de morrer ainda escreveu:  "Viva Cristo-Rei!", o grito dos mártires mexicanos. Portanto, a Igreja no México é uma Igreja mártir, certamente, mas uma Igreja colocada um pouco à margem da vida pública. Foi uma Igreja que praticou sempre uma grande religião do culto, muito significativa, importante, que é a fonte da fidelidade a Cristo e também do entusiasmo da fé, mas que sob o ponto de vista cultural era um pouco modesta. Então, era e é preciso voltar a dar impulso a toda a promoção cultural que como disse é conatural à missão da Igreja, de modo particular no México.

PERGUNTA: Outro ponto de insistência foi o do abrir-se ou recuperar a cultura da mestiçagem:  não é porventura um bom conceito não só para o México, mas também para os países ocidentais onde este conceito tem dificuldade de abrir caminho?
CARDEAL TARCISIO BERTONE: A mestiçagem é um pensamento, uma realidade muito bela porque indica que a evolução da cultura se realiza através do encontro das culturas, um encontro que não deve ser exclusão. No México, mas pode-se falar de qualquer outro país por exemplo, no Ocidente, o código da cultura ocidental é a Bíblia a Bíblia, ou podemos também dizer as raízes cristãs, por vezes são postas de lado, são recusadas, como código de vida, da experiência, da evolução cultural da Europa ou do Ocidente. No México o barroco mexicano e toda a inspiração do mestiço de Nossa Senhora de Guadalupe, correm o risco de ser divididas quer por quem propugna só a cultura indígena e mais nada, quer por quem defende uma superioridade por assim dizer da cultura europeia que teria cancelado as raízes, as fontes indígenas. E portanto arrisca-se esta contraposição entre a cultura indígena e a cultura europeia, sem um verdadeiro diálogo, sem uma sinergia que tire das duas culturas e que forme esta nova cultura que é a característica de identidade do povo mexicano e de tantos povos da América Latina. Mas esta separação, este grande divórcio é o divórcio que se verificou entre a cultura popular e a cultura das elites, muito influenciada pela cultura europeia. Então, face a este divórcio, a grande síntese barroca e mestiça é o sinal da identidade do povo mexicano. É preciso evitar esta separação e retomar a síntese entre as culturas, a transformação das culturas num diálogo efectivo, fecundo, num diálogo frutuoso. No México está representado precisamente quer pela arte quer pela presença misteriosa, extraordinária que o Papa João Paulo II ressaltou na figura de Nossa Senhora de Guadalupe dizendo que é um pouco o símbolo da inculturação da evangelização. O rosto mestiço da Virgem de Guadalupe desde o início da história do Novo Mundo, demonstrou que há uma unidade da pessoa mas na variedade das culturas e no encontro entre as culturas.

PERGUNTA: Como avalia o seu encontro com o Presidente da República?
CARDEAL TARCISIO BERTONE: Foi um encontro muito cordial, diria muito belo, muito rico:  pouco mais de uma hora e dez minutos. Um encontro com um homem que é católico e que fez um grande discurso à assembleia do Encontro mundial das famílias, que tem vontade de recuperar as raízes cristãs da cultura mexicana, e que faz inclusive perguntas claras à Igreja. Ressaltei também a relação entre religião e vida, a exigência da coerência da pertença à religião católica. Recordemo-nos que 87% dos mexicanos, segundo as estatísticas mais recentes, se declaram católicos, mas como em toda a parte por vezes o facto de se declarar católicos não significa que se viva em coerência com o Evangelho ou com as indicações da Igreja. Portanto, falámos com muita sinceridade, tratámos diversos argumentos, como o problema educativo no México; tratámos também o tema das escolas católicas, que são 5% parece-me de todas as escolas mexicanas, portanto uma percentagem muito baixa, mas que fazem um grande trabalho de carácter educativo, até aos máximos graus da instrução. Falámos também do ensino da religião católica para a formação integral dos jovens e dos adolescentes e para o desenvolvimento da sua personalidade. Citei como exemplo o Acordo estabelecido entre a Santa Sé e o Brasil que contempla esta matéria; trata-se de um grande país latino-americano, um país moderno. Saudei de bom grado todos os componentes da sua bela família com três crianças:  um tem o nome de João Paulo, provavelmente em recordação das visitas de João Paulo II ao México.

PERGUNTA: Que convicção maturou sobre a Igreja no México depois do seu encontro com os bispos, os seminaristas e os fiéis em oração?
CARDEAL TARCISIO BERTONE: Penso que seja uma Igreja muito viva. A Igreja Católica no México não é uma instituição em crise; há um bom episcopado, encontrei-me com os Bispos como faço, aliás, em todas as visitas e viagens internacionais que realizo. Também com os bispos tivemos um diálogo muito franco. Vi uma Igreja em crescimento, sob muitos pontos de vista, com todas as dificuldades dos tempos modernos e dos países da América Latina. Obviamente:  por exemplo, o problema da agressividade das seitas. Mas uma Igreja em crescimento que dá protagonismo aos leigos:  os leigos têm um grande desejo de colaboração quer no campo da cultura quer no da economia e em todos os outros âmbitos típicos da sua actividade e na política. Eles pedem à Igreja orientações e propostas de comparticipação e de compartilha. Os bispos fizeram, precisamente no passado mês de Novembro, uma reunião da conferência episcopal com a participação de 120 representantes do laicado católico muito bem preparados e intencionados, e por conseguinte capazes de colaborar e dar novo impulso à presença da Igreja na sociedade mexicana. As vocações são sempre muitíssimas, os seminários ainda estão muito cheios, com diferenças de número entre uma diocese e outra, mas há dioceses que têm centenas de seminaristas. Permanece sempre o problema formativo, mas são uma força imensa. Consideremos que no México há 92 dioceses e que este país pode ser um recurso missionário para os outros países circunstantes.

PERGUNTA: As suas intervenções e as de Bento XVI estavam em singular harmonia, quase dois momentos de uma única trama de diálogo com a Igreja mexicana. O que significa isto e qual é o objectivo desta sintonia?
CARDEAL TARCISIO BERTONE: Entretanto, devo dizer que o Papa conhece bem a Igreja do México porque a conferência episcopal, portanto todos os bispos do México, vieram em visita "ad limina" poucos meses depois da eleição de Bento XVI, o qual como para cada visita "ad limina" de episcopados do mundo se prepara adequadamente, estuda os relatórios das dioceses, dos núncios e das conferências episcopais e tem um diálogo garantido com cada bispo. Isto, naturalmente, permite conhecer a vida da Igreja e também lançar mensagens pertinentes, idóneas, concretas que dizem respeito à experiência vital da Igreja naquele determinado país. O primeiro colaborador do Papa está em perfeita sintonia com o próprio Papa. Naturalmente, os discursos do Papa são conhecidos do secretário de Estado e o secretário de Estado prepara-se para estas viagens com uma harmonização das intervenções sobre temas importantes para o Pontífice e para a Santa Sé. O tema da família, da cultura especialmente no encontro de Querétaro com o mundo da cultura são temas muito importantes para o Papa. Conhecemos um pouco toda o desenvolvimento do pensamento de Bento XVI, portanto não é difícil pôr-se em sintonia com o seu pensamento:  apoiar os bispos, o mundo católico, os leigos mexicanos nesta plena, concreta comunhão não só na oração, no afecto, também público, entusiasta ao Pontífice, mas numa partilha dos projectos culturais, pastorais que para ele são importantes. Procurei encorajar este grande país católico eis o objectivo a ser um motor, um país modelo também para a América Latina e o Caribe, sobretudo para as forças, para os recursos extraordinários que tem em si; porque possui uma grande riqueza humana e grandes recursos materiais, morais, culturais. Pode portanto fazer de abre caminho também aos outros países da América Latina. São estes os votos que formulo depois da viagem ao México, e que coloco aos pés de Nossa Senhora de Guadalupe.

 

 

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