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INTERVENÇÃO DO SECRETÁRIO DA RELAÇÃO COM OS ESTADOS
NA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE O TEMA:
«CHRISTIANS IN THE MIDDLE EAST: WHAT FUTURE?»

DISCURSO DO ARCEBISPO D. PAUL RICHARD GALLAGHER

Bari (Itália), 30 de Abril de 2015

 

Aproveito a ocasião para agradecer aos organizadores desta Conferência internacional sobre o futuro dos cristãos no Médio Oriente, promovida pela Comunidade de Santo Egídio em colaboração com a Arquidiocese de Bari. Dirijo uma saudação a todos os qualificados participantes, de maneira especial ao arcebispo anfitrião, D. Francesco Cacucci.

Nos últimos meses fomos testemunhas das atrocidades inauditas perpetradas em várias partes do Médio Oriente que obrigaram milhares de cristãos e de pessoas pertencentes a outras minorias religiosas a fugirem das próprias casas e procurar refúgio noutros lugares em condições de precariedade, submetidas a sofrimentos físicos e morais. Algumas venderam ou quase cederam as suas propriedades para pagar os «traficantes» que os fazem chegar à Europa ou a outros países. Muitas foram sequestradas e até assassinadas por causa da fé que professam.

Esta situação tão grave e dolorosa despertou num certo sentido a consciência da comunidade internacional. Estão em jogo princípios fundamentais como o valor da vida, a dignidade humana, a liberdade religiosa e a convivência pacífica e harmoniosa entre pessoas e povos.

Há tempos a Santa Sé segue com grande preocupação a situação no Médio Oriente com um compromisso pelo bem de todos mas com atenção especial à situação dos cristãos e às questões fundamentais como o respeito pelas minorias e pelos direitos humanos, em particular, a liberdade religiosa.

Entre as diversas iniciativas que o santo Padre quis promover nos últimos meses considero oportuno recordar as três seguintes.

A primeira foi a convocação ao Vaticano, de 2 a 4 de Outubro de 2004, dos Representantes Pontifícios do Médio Oriente, e dos Observadores Permanentes da Santa Sé junto das Nações Unidas a fim de que, juntamente com os Superiores da Secretaria de Estado e de outros Dicastérios da Cúria Romana, reflectissem sobre a situação dos cristãos e a sua presença na região.

A segunda iniciativa foi dedicar ao Médio Oriente o Consistório ordinário de 20 de Outubro do ano passado, com a participação dos Patriarcas das Igrejas Orientais e do Patriarca latino de Jerusalém.

Por fim, pouco antes do Natal, o Santo Padre enviou uma Carta aos Cristãos do Médio Oriente expressando-lhes a proximidade e a solidariedade da Igreja e recordando que este sofrimento «brada a Deus e apela ao compromisso de todos nós, na oração e em todos os tipos de iniciativa».

Além disso, são numerosos os apelos a favor dos cristãos e de quantos sofrem na região e noutros lugares, exortando a comunidade internacional a não desviar o olhar para o outro lado. A questão que nos interessa também está presente nos colóquios do Santo Padre e da Secretaria de Estado com as muitas Autoridades de todas as partes do mundo que vão ao Vaticano.

Ao tratar o tema hodierno sobre o futuro dos cristãos no Médio Oriente, gostaria de aprofundar quatro questões.

I. Uma presença importante

Há séculos, diversos grupos étnicos e religiosos convivem naquela terra, constituindo uma riqueza e uma característica do Médio Oriente, embora não faltem conflitos e tensões entre eles. Todavia, nos últimos anos presenciamos ao aumento desses conflitos, que põem em risco a própria sobrevivência de um Médio Oriente entendido como lugar de convivência de pessoas e povos pertencentes a diversos grupos religiosos e étnicos.

Com esta situação sofreram de modo particular os cristãos, muitos dos quais deixaram a região em busca de um futuro melhor. Este é um drama que nos preocupa.

Um Médio Oriente sem ou com poucos cristãos, afirmou Bento xvi na Exortação Apostólica pós-sinodal Ecclesia in Medio Oriente, «já não é o Médio Oriente, porque os cristãos participam juntamente com os outros crentes na identidade tão particular da região».

A presença cristã ali é importante para a vida da Igreja e também para o desenvolvimento da sociedade. Os cristãos no Médio Oriente, como disse o Santo Padre Francisco na sua intervenção na Plenária da Congregação para as Igrejas Orientais em 2013, «há dois mil anos confessam o nome de Jesus, inseridos como cidadãos a pleno título na vida social, cultural e religiosa das nações às quais pertencem». De facto, eles desempenham um papel de primeira categoria ao serviço do bem como por exemplo através da educação, do cuidado dos doentes e da assistência social; são artífices de paz, reconciliação e desenvolvimento. Contudo, ainda antes das obras da Igreja nestes âmbitos, apreciadas por todos, a maior riqueza para a região são os cristãos como tais, recorda-nos o Papa Francisco na Carta que enviou aos Cristãos do Médio Oriente.

Os cristãos, como um pequeno rebanho, têm a vocação de ser fermento na massa e são chamados à santidade da vida (cf. Carta do Santo Padre Francisco aos Cristãos do Médio Oriente). Eles, unidos entre si e em colaboração com os seguidores de outras religiões, sobretudo com os muçulmanos, são chamados a ser artífices de paz e de reconciliação e, sem ceder à tentação de se fazer tutelar nem proteger pelas autoridades políticas ou militares para «garantir» a própria sobrevivência, devem oferecer um contributo insubstituível para as respectivas sociedades que se encontram num processo de transformação rumo à modernidade, à democracia, ao estado de direito e ao pluralismo. A propósito, e como referirei mais adiante, é importante a acção dos fiéis leigos na vida social e política de cada nação. Por conseguinte, a presença cristã na região deve ser considerada uma vocação particular e por isso os fiéis devem ser encorajados a permanecer, oferecendo-lhes as motivações espirituais juntamente com o necessário apoio económico e outros.

Toda a Igreja tem a responsabilidade de apoiar com a oração e com todos os meios possíveis os nossos irmãos cristãos que confessam a sua fé no Médio Oriente e de os encorajar a continuar a ser uma presença significativa para o bem da sociedade inteira.

II. Condições para permanecer e evitar o êxodo

Parece que o êxodo dos cristãos não se interrompe, obrigando alguns Patriarcas e Bispos a elevar a sua voz para tentar diminuir esta diáspora. É um problema delicado porque os cristãos que permanecem na região devem encontrar ali condições adequadas de vida, segurança e perspectivas para o futuro. A propósito, é importante em primeiro lugar a sensibilização da Comunidade internacional para enfrentar a emergência humanitária e garantir condições mínimas de segurança para as minorias e para as comunidades cristãs. Os dados relativos à profunda crise humanitária que aflige a região são alarmantes: por exemplo, na Síria, em quatro anos de conflito o número de pessoas em estado de necessidade passou de 1 para 12,2 milhões, numa população de 23 milhões. Actualmente, deve-se enfrentar esta emergência a fim de providenciar alimentos, água, casas, educação para os jovens, trabalho e cuidados médicos aos inúmeros carentes, aos desabrigados e refugiados em todo o Médio Oriente. Contudo, pensando a longo prazo, devem ser tomadas algumas medidas adequadas a fim de garantir a presença cristã, e também a de outros grupos minoritários nas suas terras de origem.

Entre os desafios a enfrentar evidencio antes de tudo os relativos ao respeito pelos direitos humanos, em particular a liberdade de religião e de consciência. Deve-se insistir sobre a liberdade religiosa, que inclui a liberdade de mudar de religião. De facto, em numerosos países do Médio Oriente existe a liberdade de culto, enquanto o espaço da liberdade religiosa com frequência é mais limitado. Alargar este espaço de liberdade torna-se uma exigência para garantir a todos os seguidores das várias comunidades religiosas a verdadeira liberdade de viver e professar a própria fé.

Outro direito que deve ser garantido é fazer com que os prófugos possam regressar e viver com dignidade e segurança no próprio país e ambiente. Trata-se de um direito que deve ser apoiado e garantido pela Comunidade internacional e pelos Estados, dos quais as pessoas desabrigadas ou refugiadas são cidadãos.

Devemos frisar que os cristãos não querem simplesmente ser tolerados mas considerados cidadãos a pleno título naquelas terras onde estão presentes desde o início do cristianismo, muito antes da chegada do Islão. É importante que este conceito de cidadania seja promovido cada vez mais como ponto de referência para a vida social, garantindo os direitos de todos, inclusive as minorias, através de instrumentos jurídicos adequados.

III. Papel da comunidade internacional

O papel que a Comunidade internacional deve desempenhar para garantir a presença dos cristãos e de outros grupos minoritários no Médio Oriente é muito importante e primordial. Ela não pode permanecer inerte nem indiferente diante da dramática situação actual. Em face dos desafios que se apresentam, tem que ir à raiz dos problemas, reconhecer inclusive os erros do passado e procurar favorecer um futuro de paz e de desenvolvimento para a região, pondo no centro o bem da pessoa e o bem comum. A experiência demonstrou que a escolha da guerra, em vez do diálogo e da negociação, multiplica o sofrimento de toda a população médio-oriental. Que produziu o caminho da violência senão uma ulterior destruição, sem resolver os problemas? Só a via da paz traz esperança e progresso. Portanto, deve-se promover a paz mediante a negociação e o trabalho diplomático cessando, como exorta o Santo Padre, o tráfico de armas.

No caso específico das violações e dos abusos cometidos contra os cristãos e as minorias religiosas, a Comunidade internacional, através das Nações Unidas e das suas estruturas que trabalham nas emergências, deverá agir a fim de prevenir eventuais e novos crimes e assistir os numerosos refugiados. Parece oportuno que os Estados da Região participem directamente, com toda a Comunidade internacional, nas acções a empreender com a consciência de que não se trata de proteger uma ou outra comunidade religiosa ou grupo étnico, mas as pessoas que são parte da única família humana e cujos direitos fundamentais são violados sistematicamente. Devem-se encontrar os mecanismos para encorajar em particular os países de maioria muçulmana a enfrentar o fenómeno do terrorismo de maneira séria, com controles sobre os ensinamentos nas mesquitas e escolas, sem esquecer que se deve pôr também um determinado limite a diversas expressões e manifestações que se verificam de vez em quando no Ocidente a fim de que se evitem actos de ofensa e provocação a quanto é amado e considerado sagrado pelas diversas religiões. Além disso, deve ser assinalado que no mundo islâmico existe uma questão de fundo, sobre a qual não falta um certo debate, que é a relação entre a religião e o Estado. O nexo inseparável entre religião e política e a falta de distinção entre o âmbito religioso e civil torna difícil a vida das minorias não-muçulmanas e, em particular, dos cristãos. Portanto, precisaria contribuir para fazer amadurecer uma ideia da necessidade de distinguir os dois âmbitos, promover a autonomia recíproca, também na colaboração das diversas esferas (que podem coexistir sem se contradizer), e o diálogo entre as autoridades religiosas e as autoridades políticas, no respeito recíproco das específicas competências e independência.

IV. Tarefa da Igreja

Diante destes desafios que pode fazer a Igreja? Já mencionei diversos compromissos que toda a Igreja pode assumir a favor dos cristãos da região apoiando-os com a oração e com todos os tipos de iniciativa.

De facto, muitos cristãos da região sentem-se sozinhos e abandonados. É importante que a Igreja venha ao seu encontro, apoiando-os, iluminando a sua vocação particular de cristãos do Médio Oriente e possa estreitar com eles vínculos de amizade, proximidade e comunhão.

Eles devem ser ajudados a enfrentar a crise humanitária dos fiéis e de outros grupos minoritários que sofrem todo tipo de perseguição e discriminação. Apreciamos a generosidade e tantas instituições e pessoas cristãs mas os cristãos do mundo inteiro ainda devem ser sensibilizados fim de favorecer a solidariedade para com os nossos irmãos sofredores no Médio Oriente.

A presença da Igreja deve ser encorajada e apreciada e, em particular, por quantos têm responsabilidades diante da comunidade: bispos, sacerdotes, diáconos, religiosos, religiosas e catequistas, a fim de oferecer a todos um sinal de esperança e conforto, ecorajar os fiéis a continuar a testemunhar que os discípulos de Cristo são chamados a ser «sal da terra e luz do mundo». Deste modo poderão construir juntanmente com os seguidores de outras religiões, inclusive unidos na dor e no sofrimento, uma sociedade mais justa e humana na qual todos ocupam um lugar, têm uma tarefa e uma responsabilidade. Neste aspecto é muito importante o papel das famílias e dos leigos em geral. A este propósito, revelar-se-ia de grande utilidade a formação dos leigos que possam qualificar-se em diversos temas da Doutrina Social da Igreja (como a separação entre religião e Estado, o Estado de direito e a cidadania, a democracia, o pluralismo, os direitos humanos, as liberdades fundamentais) e que possam inclusive assumir responsabilidades no âmbito político ou económico.

Torna-se cada vez mais evidente a todos a importância do diálogo inter-religioso e muitos falam disto. Contudo, é fundamental comprometer-se seriamente e favorecê-lo, ainda mais porque ele constitui o melhor antídoto contra qualquer forma de fundamentalismo. Os líderes religiosos judeus, cristãos e muçulmanos podem e devem desempenhar um papel indispensável para favorecer o diálogo inter-religioso e intercultural e a educação para a compreensão recíproca. Além disso, eles devem denunciar claramente à instrumentalização da religião para justificar a violência.

Não posso concluir este pronunciamento sem fazer referência a outra realidade que evidencia, não o êxodo dos fiéis do Médio Oriente, mas ao contrário, uma nova presença cristã naquela terra. Trata-se de um dado que representa um desafio para a Igreja e um sinal de esperança. Com efeito, ao lado da diminuição dos fiéis das Igrejas de antiga tradição presentes no Médio Oriente há muitos séculos, verifica-se o aumento do número de cristãos em busca de trabalho provenientes de outros países, sobretudo da Ásia.(1) Devemos prestar mais atenção a essa nova presença cristã e ir ao seu encontro com sensibilidade pastoral e acolhimento.

Os cristãos no Médio Oriente vivem uma situação de grande dificuldade, alguns deles sofreram a perseguição só pelo facto de acreditar em Jesus. Os sofrimentos dos cristãos, recorda-nos o Santo Padre na Carta que lhes enviou, «oferecem um contributo inestimável para a causa da unidade. É o ecumenismo do sangue, que exige confiante abnegação à acção do Espírito Santo». Os Padres da Igreja diziam que o sangue dos mártires é a semente de novos cristãos. Espero que com a ajuda do Senhor, o sofrimentos de tantos irmãos nossos produza frutos de bem para o futuro dos cristãos na Região. Os desafios que se apresentam a nível político, diplomático e pastoral são muitos mas não devemos esquecer que Jesus Cristo é o Senhor da história. A Ele confiemos o futuro dos cristãos no Médio Oriente, a sua presença naquela «terra abençoada pelo Senhor».


(1) Este fenómeno é particularmente relevante nos Países do Golfo. Segundo o Anuário Pontifício de 2015, no Vicariato Apostólico da Arábia do Norte, que inclui o Kuwait, Catar, Bahrein e Arábia Saudita, os católicos seriam 2.445.000 e no da Arábia do Sul, composto pelos Emirados Árabes Unidos, Iémem e Omã, 942.000. Além disso, haveria muitos cristãos pertencentes a outras Igrejas ou confissões cristãs, das quais é difícil calcular o número. Quase todos os cristãos residentes nos dois Vicariatos apostólicos são estrangeiros.