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INTERVENÇÃO DO OBSERVADOR PERMANENTE  DA SANTA SÉ
JUNTO À UNESCO POR OCASIÃO DA 37ª SESSÃO DA CONFERÊNCIA GERAL
[PARIS, 5-20 DE NOVEMBRO DE 2013]

DISCURSO DE MONS. FRANCESCO FOLLO

Paris, 9 de Novembro de 2013

Educação na partilha e no diálogo para aproximar as culturas

 

Senhor Presidente
da Conferência Geral
Senhora Directora-Geral
Excelências!

É motivo de grande honra e prazer para a Santa Sé congratular-se com o Sr. Hao Ping, Vice-Ministro da Educação da República Popular Chinesa, pela sua eleição à Presidência desta estimável Assembleia, e com a Sr.ª Irina Bokova pelo seu segundo mandato como Directora-Geral da Unesco. Naturalmente, estas congratulações são formuladas em nome de Sua Santidade o Papa Francisco, que conhece bem e aprecia o trabalho da «nossa» Organização.

A Conferência geral da Unesco reflecte também sobre a «cultura da aproximação», como declararam o Papa Francisco e o Sr. Ban Ki-moon por ocasião do seu encontro de 9 de Abril de 2013. Por isso a Santa Sé deseja dar a sua contribuição para falar, por um lado, do que todos temos em comum hoje e, por outro, daquilo que somos realmente, da nossa especificidade insuperável.

Este contributo propõe algumas reflexões que se inscrevem no quadro dos objectivos principais da Unesco:

1) a educação e a sua contribuição para o desenvolvimento sustentável, incluindo o desenvolvimento das culturas e o diálogo intercultural que as aproxima;

2) a atenção aos jovens e à contribuição que eles podem dar para a nossa Organização no século XXI;

3) o diálogo como comunicação, no âmbito de uma comunidade;

4) a paz e a dimensão social das religiões.

Impõe-se uma constatação: os nossos Estados são habitados, hoje como sempre, contemporaneamente por diversas gerações. A existência de uma cidade (no sentido grego da polis = Estado) pressupõe que ela conte entre os seus habitantes crianças, jovens, pessoas de idade madura, idosos, e também moribundos. A esta constatação descritiva sobre a coexistência das pessoas no âmbito das cidades acrescenta-se uma constatação normativa: todos estão vinculados por deveres recíprocos. Podemos dizer que o primeiro dever que vincula o ser humano ao seu próximo é desejar o bem comum. Trata-se de uma verdade fundamental. A partir dela podem fazer-se observações mais concretas com consequências sobre o programa a médio prazo da Unesco (37 C/4).

Educação na partilha

Educação na partilha significa enriquecer-se e deste modo favorecer um desenvolvimento sustentável, que é essencial para os Objectivos do Desenvolvimento pós-2015, no âmbito da estratégia a médio prazo (37 C/4).

Por conseguinte, a primeira observação é que os maiores deveres, nas nossas cidades correspondem necessariamente às pessoas mais dotadas, «ricas» de cultura e de saber, e não só de dinheiro. «Rico» unicamente no sentido social e cultural. Nestes termos o rico, o privilegiado, a pessoa culta, é antes de tudo aquele que sabe, que aprendeu a discernir o bem comum. É aquele que recebeu um património cultural: sabe viver na sua cidade, conhece a sua história, sabe discernir as contribuições positivas da história e os inconvenientes que se devem evitar. E se se reconhecer rico deste modo, compreender-se-á que queira partilhar as suas riquezas. Por conseguinte, pode-se supor que as nossas riquezas culturais, sob muitos aspectos, são um factor de felicidade. E pode-se presumir que tenham um certo desejo de não ficar com a nossa felicidade só para nós.

Portanto, o «rico» não é aquele que possui. É aquele que transmite e partilha. Somos convidados à partilha. «Não haverá harmonia nem felicidade numa sociedade que ignora, que marginaliza e que abandona na periferia uma parte de si mesma... Só quando formos capazes de partilhar é que nos enriqueceremos deveras» (Papa Francisco, 25 de Julho de 2013). A partilha material e «imaterial», espiritual, não implica um empobrecimento: é um enriquecimento recíproco. E dado que a maior parte de nós aqui presentes certamente se encontra na condição daquele que é reconhecido como pessoa bem educada, temos por conseguinte uma tarefa a desempenhar. Que não é de importância secundária. Se nos recusássemos transmitir aquilo que, aliás, nos foi doado por quantos antes de nós foram ricos — os nossos pais, mestres, professores e outros ainda — faltaríamos dramaticamente à nossa missão. A cultura, a arte de viver juntos, o amor ao bem comum, também o amor pela sabedoria, tudo isto desapareceria se o guardássemos só para nós. Em resposta ao bonito tema escolhido pela Unesco para o fórum das ONGs de Setembro de 2013, a Santa Sé frisa que a transmissão e a partilha são objectivos no campo da educação, destinados a formar os cidadãos do mundo de amanhã, segundo as orientações do 37/C4 e C5.

Valorizar a contribuição dos jovens

A segunda observação é que felizmente nós somos obrigados a transmitir e a partilhar as nossas riquezas culturais com os jovens. Um «foro» é o lugar no qual todos se encontram e debatem de coisas importantes e onde todos têm o direito de participar no debate. Cada voz humana deve ser ouvida. Os jovens e os idosos constroem o futuro dos povos. Os jovens porque são continuadores da história, os idosos porque transmitem a sabedoria da sua vida. Mas a voz dos mais jovens recordar-nos-á sempre o que nós lhes devemos dar e, o que é de igual modo importante, o que eles nos podem dar.

A expectativa de vida do jovem é superior à do idoso. Todos os que hoje são jovens amanhã terão a nossa idade. Competirá a eles a responsabilidade da cidade. Desde já são um recurso para o bem comum: o compromisso social e cultural dos jovens é um fenómeno relevante, tão importante quão o seu envolvimento triste, forçado, em todas as guerras que devastam o planeta. A voz das jovens gerações equivale a uma chamada à ordem ou a um apelo à responsabilidade. Muitas vezes há quem acuse ingenuamente os jovens de serem «idealistas». Ao contrário, seria bom alegrar-se por isso. Todos concordamos sobre o facto que o Estado deve garantir «a maior paz na maior justiça», e é este ideal que eles nos recordam. O ideal deve apenas ter o status inofensivo do irreal? As nossas cidades são imperfeitas. Muitas vezes contentamo-nos com elas. O desejo juvenil do melhor dos mundos não resiste, evidentemente, à crítica. Contudo, não podemos contentar-nos com meias-justiças e uma meia-paz. Os nossos filhos ou netos não têm vontade de se contentar. Ouvi-los permitir-nos-á dar-lhes de modo ainda mais generoso tudo o que possuímos, tornando-os capazes de fazer frutificar uma herança e, um dia, dar ainda mais o melhor de si. As suas expectativas, as suas energias e a sua inteligência são um fenómeno para uma cultura nova de paz e de desenvolvimento autêntico. Uma verdadeira cultura universal no sentido etimológico da palavra: um que vai em direcção ao outro (unus versus alio vel aliis). Os jovens são capazes de viver no amor e de ser solidários com todos os seus irmãos em humanidade, sem fazer discriminações.

É por este motivo que a Santa Sé apoia os programas da Unesco para os jovens. Ela apoia fortemente o tema do foro dos jovens desta 37ª conferência geral Os jovens e a inclusão social: compromisso cívico e desenvolvimento das competências, e as temáticas contidas na estratégia a médio prazo do 37 C/4.

O diálogo como comunicação no âmbito de uma comunidade

A terceira observação deriva da segunda. Todos nos encontramos no foro da cidade. Mas trata-se aqui de um dado de facto ou de uma esperança? Os gregos e os romanos, e muitos outros, tinham o seu foro; um africano recordar-nos-á aqui a função da árvore da palavra. Mas nós temos deveras um nosso foro? Os gregos e os romanos falavam entre eles. Nós falamos muito de «comunicação», esforçamo-nos por resolver os problemas de comunicação, e isto demonstra, naturalmente, que a comunicação é um perigo. É fácil cochichar mas não é fácil falar. Para dizer a verdade, nem sempre é fácil viver juntos numa sociedade, mesmo quando ela pretende fundar-se sobre os valores mais nobres que conhece. Por isso, pouca importância têm as dificuldades, das quais é suficiente tomar as medidas realisticamente. Somos detentores da palavra, detentores da razão e feitos para a existência «política», ou seja, para a vida no âmbito de uma cidade. E dado que é assim, compete a nós perpetuar, mas por vezes também criar, as condições necessárias para que todos falem com todos. Uma cidade contemporânea pode ser poliglota. Por outro lado, é melhor falar diversas línguas do que uma só. Contudo, devemos ter uma só língua em comum, comum a todos, e servir-nos dela de modo inteligente. Compreendo o meu próximo se entendo e falo a sua língua. O que, naturalmente, não se dá por si só. Mas mexericaríamos menos sobre uma determinada falta de comunicação entre as gerações se jovens e idosos se interessassem mais sobre o que queremos dizer e não sobre os seus estilos ou as suas pequenas diferenças linguísticas. A este propósito, a Santa Sé apoia mais uma vez os objectivos da estratégia a médio prazo da Unesco, descritos no 37 C/4, sobretudo relativos ao desenvolvimento social inclusivo — e da sua articulação com o diálogo intercultural — e da aproximação entre as culturas. Mas seria desejável que os vínculos com o diálogo intercultural e a aproximação entre as culturas fossem incluídas também na sua relação linguística e cultural.

Quem diz comunicação deve acrescentar «comunidade». De facto, se podemos comunicar é porque temos em comum uma igualdade metafísica e porque pertencemos à comunidade humana. Contudo, não é suficiente estabelecer uma igualdade metafísica. Com efeito, o que temos em comum deve ser «vivido em comum». No man is an island, nenhum homem é uma ilha. O poeta John Donne dizia deste modo o que a tradição filosófica nos recorda, ela também, a seu modo; trata-se de uma espécie de facto bruto ou de um facto sobre o qual seria absurdo pretender voltar. Contudo, deve-se dizer isto com insistência: não estamos condenados a existir no âmbito de comunidades, mas somos feitos para viver humanamente juntos, e para criar sempre um pouco as condições que tornam este «ser homens juntos» o mais feliz possível. Jean-Paul Sartre dizia que «o inferno são os outros». Uma cidade humana digna de tal nome nunca será um paraíso. Mas dado que o outro, qualquer que seja o seu rosto, é ao mesmo tempo um outro eu mesmo, um próximo e um amigo possível, quantos vierem depois de nós deverão saber que nós desempenhamos todos os nossos deveres; portanto, deverão ter a generosidade de nos perdoar e poderão então aceitar uma missão: fazer com que as suas cidades se tornem lugares nos quais reine uma certa alegria de existir juntos como pessoas humanas. A inclusão social dos jovens, a eliminação da pobreza e o desenvolvimento sustentável levam à felicidade de toda a cidade, por conseguinte, à edificação da paz. A este respeito a Santa Sé apoia os esforços dos Estados e do Secretariado da Unesco neste sentido.

Por conseguinte hoje podemos falar no plural de «nós», de todos nós com as riquezas que temos para dar, de todos nós com as nossas pobrezas e também as nossas riquezas. Este «nós» não é um agregado ou um conjunto heteróclito. Forma aquilo a que chamamos, muitas vezes sem pensar muito, um «corpo social». Um corpo é uma forma vivente, com um passado e que terá um futuro. Este passado, como o recebemos hoje, como devemos fazê-lo viver e como será ulteriormente dado a pessoas mais jovens do que nós, nunca é letra morta: dado que tem um presente e um futuro é preciso dizer que vivemos sob a protecção de uma «tradição vivente». A tradição que nos permite habitar as nossas cidades em paz não é algo que existe fora de nós. Mantemo-la em vida transmitindo-a, não retendo-a para uma só geração ou para um breve período, e sabendo, afinal, que a cada dia basta a sua pena.

Paz e dimensão social e política das religiões

Chegamos ao último ponto: as realidades que nos preocupam — a educação, a vida da cidade, a paz e outras ainda — só podem dar frutos se as nossas preocupações forem propriamente espirituais. Dizer isto significa crer que tudo o que diz respeito à nossa existência se inscreve no movimento mais profundo e mais amplo de uma vida em busca de um significado e propensa para o seu desenvolvimento e cumprimento. Quando falamos das nossas condições de vida, acabamos sempre — e é positivo — por nos interessar do movimento profundo sobre o qual se baseia a nossa experiência, isto é, a nossa vida espiritual. Uma vida espiritual que não é um privilégio nem uma escolha de alguns, mas uma experiência oferecida a todos. A esfera espiritual tem afinal a sua dimensão social. Como se poderia honrar e promover o bem comum, no quadro técnico das nossas culturas, se estas se privassem da contribuição insubstituível das tradições religiosas? «As religiões têm uma função comum e insubstituível no quadro “técnico” das culturas contemporâneas, para que o bem comum terreno seja completo e equilibrado» (Cardeal Jean Daniélou, L’oraison problème politique, p. 38).

No sulco do magistério pontifício, mas também ouvindo filósofos como Habermas, com o qual o cardeal Ratzinger dialogou a 19 de Janeiro de 2004, podemos de igual modo ter em consideração o papel público que o cristianismo (como também as outras religiões) pode desempenhar para a promoção do ser humano e para o bem comum de toda a humanidade, no pleno respeito e promoção da liberdade religiosa e civil de todos e de cada um, sem confundir de modo algum a Igreja católica — como qualquer outra religião — com a comunidade política.

Para concluir, uma capacidade como esta de plasmar o futuro de sociedades pacíficas aumenta onde é permitida uma experiência da transcendência. Quando os homens compreendem que o mundo é muito mais do que a terra que eles trabalham com os seus conceitos técnicos e económicos, então os seus horizontes limitados alargam-se. Deveríamos dar-nos conta de que o verdadeiro realismo só pode emergir quando o homem está preparado para se ver a partir do futuro, um futuro que o transcende.

Inspirada por este racionalismo respeitador da esfera espiritual e aberto ao mistério que considera a razão a sua melhor aliada, a Santa Sé expressa votos a fim de que, aqui na Unesco, nos possamos interrogar de modo cada vez mais fecundo sobre as condições para construir o espaço democrático, sobre o papel positivo das tradições religiosas nesta construção e sobre a contribuição específica de tais tradições para o tecer do projecto humano e político do viver-juntos em democracia.

Assim fazendo, continuaremos a pôr a pessoa, o seu desenvolvimento integral e o bem comum no centro das nossas reflexões e das nossas acções e a Unesco será fiel à sua definição, à sua vocação e à sua missão ao serviço da humanidade do homem.

 

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