SECRETARIA DE ESTADO DISCURSO DE D. SILVANO TOMASI Genebra, 8 de Junho de 2006 Senhor Presidente 1. A comunidade internacional comprometeu-se solenemente em promover "o emprego completo e produtivo e o trabalho decente para todos, inclusive para as mulheres e os jovens" (Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Resolução 60/1: Resultado do Encontro Mundial de 2005, n. 47). O papel estratégico do trabalho na luta contra a pobreza e em prol da qualidade do trabalho, dentro do seu contexto social, influi directamente sobre a dignidade da pessoa humana, ainda antes que ela sirva como indispensável instrumento do desenvolvimento. A Delegação da Santa Sé observa com satisfação que o trabalho decente, não apenas como conceito, mas também como agenda estratégica, está agora na linha de vanguarda de todos os debates acerca da erradicação da pobreza, e que há uma convergência de esforços que visa a sua realização. No entanto, esta tarefa ainda está muito longe de ter sido alcançada. A liberalização das finanças e do comércio e o permanente processo de globalização têm produzido muita riqueza, mas numerosas evidências estão a salientar as crescentes disparidades entre os países e nos países, no que se refere ao usufruto dos benefícios desta aumentada riqueza. Quando se adopta a medida do trabalho decente, torna-se evidente que ainda demasiadas pessoas permanecem excluídas do seu benefício, porque são indecentemente exploradas ou porque não têm sequer um trabalho. Existem dezenas de milhões de indivíduos não suficientemente qualificados para abordar o problema da formação para a globalização, ou cujas capacidades e talentos são utilizados para fomentar uma economia global desprovida da relativa partilha dos benefícios. Tais pessoas são: migrantes privados da necessária documentação para trabalhar na agricultura, nas fábricas ou em serviços domésticos; mulheres empregadas na indústria têxtil, que trabalham em condições insalubres e recebem salários miseráveis; trabalhadores discriminados pela sua raça, casta ou religião, relegados aos serviços marginais da sociedade, sem a possibilidade de serem promovidos; operários explorados nas regiões onde se processam produtos destinados à exportação; e, no mundo inteiro, empregados que continuam a receber cada vez menos e devem trabalhar cada vez mais, para serem remunerados com um salário decente. Como já se observou, é necessário recordar que a desigualdade e a pobreza são as questões morais mais importantes do século XXI. Deste modo, a globalização que fomenta um progresso económico desligado da igualdade bloqueia o acesso ao trabalho decente e põe em dúvida o corrente funcionamento das estruturas internacionais criadas para facilitar o fluxo de ideias, de capital, de tecnologia, de bens e de pessoas, em ordem ao bem comum. 2. A importância do trabalho é evidente sobretudo na formação da humanidade da pessoa. Não é o consumo, mas a capacidade de criar novas coisas, situações e expressões, que caracteriza a vitalidade da pessoa, da sua auto-expressão. O cunho pessoal que se dá através do trabalho suscita satisfação e o desejo de se desenvolver, bem como de oferecer uma contribuição positiva para a coexistência social. Quando o trabalho é escasso ou indecente, é a pessoa que termina por se sentir sufocada e impelida para a crise, e a pessoa em crise é facilmente tentada por um comportamento anti-social e destruidor. Do primado do valor ético do trabalho humano flui "uma sequência lógica de prioridades: da pessoa sobre o trabalho, do trabalho sobre o capital, e do destino universal dos bens sobre o direito exclusivo à posse particular dos meios de produção" (Cf. João Paulo II, Laborem exercens, nn. 12-20), em síntese, do ser humano sobre os negócios, sobre o aumentado valor do mercado e sobre a posse material. A mudada perspectiva implicada pelo trabalho decente para todos exige uma renovada ênfase sobre a dignidade de cada pessoa e sobre o bem comum, que devem ser postos no centro de todas as actividades e políticas de produção. Senhor Presidente 3. As iniciativas de solidariedade, tomadas em vista de promover a realização da Agenda sobre o Trabalho Decente a nível local, são eficazes formas de cooperação que conferem credibilidade a esta Agenda. Nas décadas passadas, a Organização Internacional do Trabalho desenvolveu uma rica série de padrões de trabalho, que permanecem a via-mestra através da qual a comunidade internacional pode alcançar um progressivo melhoramento da qualidade do trabalho e dos direitos dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, esta singular dimensão da Organização Internacional do Trabalho exige nos dias de hoje uma convergência de esforços com outras agências internacionais e uma coerência de planos e de acções, de tal forma que a complexidade das relações económicas e sociais não possam frustrar nem adiar a finalidade mundial do trabalho decente. 4. Dois passos dados neste contexto oferecem uma dimensão encorajadora à realização concreta das finalidades do trabalho decente. O primeiro diz respeito à Convenção sobre as piores formas de trabalho infantil (cf. n. 182), emanada em 1999 e à recente boa notícia de que pela primeira vez o número de crianças obrigadas a trabalhar diminuiu de 11% a nível mundial, de 2000 a 2004, passando de 248 a 218 milhões. A perspectiva de que as crianças possam ser salvas do trabalho agrícola ou da exploração nas pedreiras, que já não possam ser traficadas para a prostituição forçada e que consigam frequentar a escola e crescer com esperança, tudo isto deveria duplicar a determinação dos governos, dos empregadores, dos sindicatos e da sociedade civil, em vista da total eliminação do trabalho infantil. O segundo passo refere-se à Convenção e Recomendação de um quadro de segurança e saúde no trabalho, que se espera sejam adoptadas quanto antes. Um clima de trabalho seguro e sadio constitui um componente integral do trabalho decente, especialmente quando estamos conscientes de que cada ano se registram 270 milhões de acidentes de trabalho e 160 milhões de pessoas sofrem de enfermidades relacionadas com o trabalho, e que os acidentes e as doenças causam a morte de cerca de 5.000 trabalhadores por dia (Cf. Bureau international du Travail. Conférence internationale du Travail, 93 session, 2005. Rapport IV (1): Cadre promotionnel pour la sécurité et pour la santé au travail, pág. 1). O desenvolvimento paciente dos parâmetros de trabalho, quando estão presentes a vontade política e a colaboração de todos os sectores da sociedade, torna-se um instrumento eficaz que proporciona resultados e transforma positivamente o mundo do trabalho. Senhor Presidente 5. Para concluir, o processo de globalização, que se desenvolve rapidamente, tem um impacto directo sobre a organização da produção e do trabalho em geral, enquanto continua a exigir adaptação e imaginação para favorecer o trabalho decente. Mas o trabalho só será decente, como o Papa Bento XVI recordou aos trabalhadores por ocasião da festa do dia 1 do passado mês de Maio, se a pessoa humana for "o sujeito e o protagonista do trabalho". Com efeito, o trabalho é de importância primordial para "a realização de cada mulher e de cada homem, bem como para o desenvolvimento da sociedade, e este constitui o motivo pelo qual é necessário que [o trabalho] seja organizado e cumprido sempre no pleno respeito pela dignidade humana e ao serviço do bem comum" (Cf. Bento XVI, Homilia de 19 de Março de 2006).
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