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INTERVENÇÃO DA DELEGAÇÃO PONTIFÍCIA
 NA CONFERÊNCIA PARA A INSTITUIÇÃO
DE UM TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Terça-feira, 7 de Julho de 1998

 

Obrigado, Senhor Presidente!

A minha Delegação deseja agradecer- lhe todo o seu trabalho nestas sessões e a sua habilíssima liderança, bem como aos ilustres membros da Delegação australiana, que despenderam grandes esforços em vista de facilitar o nosso debate acerca destas problemáticas vitais. A minha Delegação exprime também a própria gratidão às Delegações que compartilharam os nossos interesses nestas importantes questões, embora os nossos pontos de vista específicos nem sempre coincidam.

A minha Delegação está comprometida na salvaguarda dos direitos naturais e inalienáveis de todos os seres humanos. A Santa Sé tem uma longa história de progresso e de protecção destes direitos, que são constitutivos da existência humana. Há mais de uma geração, a Igreja pronunciou-se com as seguintes expressões:

«No nosso tempo, uma especial obrigação impele-nos a tornarmo-nos o próximo de cada pessoa sem excepção e a ajudarmos os outros de maneira activa, todas as vezes que os encontrarmos ao longo do nosso caminho... Tudo o que se opõe à própria vida, como por exemplo qualquer género de homicídio, genocídio... tudo o que violar a integridade da pessoa humana, como a mutilação, os tormentos infligidos no corpo e no espírito, as tentativas de coagir a própria vontade; tudo o que ultrajar a dignidade do homem, como as condições de vida desumanas, o aprisionamento arbitrário, a deportação, a escravidão, a prostituição, a venda de mulheres e de crianças... todas estas coisas e outras semelhantes são verdadeiramente infames. Elas envenenam a sociedade humana... Além disso, constituem uma suprema desonra ao Criador».

Assim como fazem muitos outros, também a Santa Sé continua ainda hoje a trabalhar em benefício do progresso da tutela das vítimas inocentes de graves crimes internacionais, mediante mecanismos jurídicos sólidos, justos, efectivos e prudentes.

Consequentemente, a Santa Sé condena as hediondas agressões sexuais que ferem enormemente as mulheres e as crianças, violando as normas legais fundamentais aceites de forma virtual por toda a humanidade. Os mecanismos jurídicos que acabam de ser mencionados deveriam levar perante a justiça os responsáveis pela perpetração de tais atrocidades. Um incentivo a esta reivindicação é o facto de as pessoas que representam a Santa Sé no mundo inteiro, assistindo, confortando, curando e consolando as vítimas dessas atrocidades, frequentemente se tornarem elas mesmas vítimas. Sim, Senhor Presidente, são muito familiares à Santa Sé os gravíssimos crimes, fonte de solicitude para a comunidade internacional, em virtude destas experiências que se repetem com frequência.

Por conseguinte, a minha Delegação preocupa-se com o conceito que se tornou manifesto no esboço do Estatuto, isto é, o elemento da «(en)forced pregnancy» (gravidez forçada ou coagida). A Santa Sé compartilha a solicitude dos outros no que concerne ao significado desta terminologia indefinida. Qualquer acusação de um crime deve basear-se no princípio legal fundamental de que existe uma compreensão inteligível do crime que deve ser julgado. Além disso, todos nós estamos conscientes de que não pode haver crime sem lei. A minha Delegação une-se às inúmeras outras Delegações que aprovam o princípio legal fundamental: nullum crimen sine lege. Numa recente intervenção nesta Conferência, uma ilustre delegada da Bósnia-Herzegovina recordou-nos esta norma durante um debate acerca do termo «purificação étnica». Como ela afirmou, este termo foi cunhado pelos perpetradores, com a finalidade de dar ao seu crime «uma imagem mais neutra »; contudo, como a ilustre delegada observou de modo apropriado, a terminologia legal mais específica para tal crime é ocultada por estas conhecidas e aceites formulações: GENOCÍDIO e DEPORTAÇÃO.

Agora, por que a minha Delegação faz eco da solicitude dos outros, no que concerne à «(en)forced pregnancy»? Depois de uma exaustiva investigação do seu significado, não encontramos uma explicação ou definição desta expressão em qualquer texto jurídico-legal. Contudo, estamos cônscios de que algumas pessoas atribuem a este termo o significado da negação da interrupção da gravidez. Para sermos francos, esta frase imprecisa não tem lugar nas normas fundamentais da lei internacional.

Por conseguinte, a minha Delegação une-se aos outros, afirmando que a linguagem problemática da «(en)forced pregnancy» deve ser eliminada do esboço do Estatuto para o Tribunal penal internacional (ICC), todas as vezes que nele aparecer. Além disso, não deveria ser substituída pela frase, igualmente problemática, «forced pregnancy». Nenhum destes termos oferece uma reparação legal para os crimes em que os criminosos brutalizam os seus irmãos em humanidade. Como aconteceu com a caixa de Pandora, para alguns esta linguagem pode parecer atraente; contudo, da mesma forma que se verificou com a caixa de Pandora, ela contém horrores que não podemos deixar escapar. A retenção da «forced pregnancy» ou da «enforced pregnancy» apresenta a irónica possibilidade de fazer do cumprimento do estado legítimo e da lei convencional um «crime de guerra». Incluídos nestas dificuldades encontram-se desafios impróprios a constituições e legislações de Estados, tratados multilaterais e obrigações por estes impostas, bem como a regra do contrato que entra em jogo quando dois Estados podem estar envolvidos na acção judicial contra pessoas acusadas de crimes que podem pertencer à jurisdição do Tribunal penal internacional.

Quem se opõe ao ponto de vista da minha Delegação pode afirmar que é possível resolver estas questões mediante reservas ou declarações interpretativas feitas pelos participantes no Estatuto. Respeitosamente, a minha Delegação discorda. Em primeiro lugar, permanece a questão acerca do facto de se poder fazer reservas ao Estatuto. Esta importantíssima problemática ainda não foi resolvida. Em segundo lugar, as reservas e as declarações pouco contribuem para dar uniformidade aos princípios da lei internacional que presumivelmente são reconhecidos a nível universal.

O facto de a minha Delegação, da mesma forma que as outras Delegações, estar consciente das imperfeições fundamentais ínsitas no singular conceito da «[en]forced pregnancy», não significa que não estamos interessados no flagelo das mulheres e das crianças da Bósnia-Herzegovina, que foram vítimas da violência. Pelo contrário, para reafirmar o que se disse precedentemente, as pessoas responsáveis pelas brutalidades repugnantes cometidas contra as crianças, as mulheres e os homens — todos são criaturas de Deus! —  devem e podem ser incriminadas pelas suas violações dos princípios fundamentais da lei internacional.

Agora, a Comunidade internacional pode abordar juridicamente a violência que fere de maneira grave as vítimas inocentes, mas deve fazê-lo no contexto dos princípios da jurisprudência penal internacional, compreendidos e aceites de forma clarividente, e não mediante interpretações perigosamente ambíguas. A eliminação da frase «(en)forced pregnancy» não priva da justiça os perpetradores dos crimes violentos, identificados com os horrores da Bósnia ou de outros lugares. Tais acções podem e devem ser julgadas no contexto das existentes normas legais que se ocupam —   por exemplo —   do estupro, da prostituição forçada, do assalto indecente, da detenção ilegal, da perseguição, da escravidão, da tortura, da causa voluntária de grande sofrimento, do genocídio [um crime que inclui: (1) a provocação de graves feridas corporais ou mentais aos membros de um grupo; (2) a inflicção deliberada de condições de vida calculadas sobre o grupo, com o objectivo de causar a sua destruição física total ou parcial; (3) a imposição de medidas que visam a prevenção de nascimentos no interior do grupo; e (4) a transferência forçada das crianças de um grupo para outro], do extermínio, da perpetração de ultrajes contra a dignidade das pessoas [em particular, a humilhação e o tratamento degradante] e das experiências médicas. Senhor Presidente, não posso deixar de recordar que estas são as normas penais definitórias aprovadas por este e outros grupos de trabalho.

É suficiente que aqueles que olham com cepticismo para a posição da minha Delegação tenham em consideração as decisões jurídicas e as convenções internacionais para se recordarem que as vítimas dos crimes internacionais da Bósnia-Herzegovina —   especialmente as crianças e as mulheres —  têm uma sólida reparação legal. Exemplos de tais decisões judiciais incluem as resoluções e as ordens do Tribunal Internacional de Justiça (ICJ) presentes no caso Bosnia and Herzegovina v. Jugoslavia [os crimes sexuais constituem uma manifestação de genocídio] e a decisão do Segundo Circuito dos Estados Unidos, presente no caso Kadić v. Karadzić, na qual o tribunal estabeleceu que [e faço a citação] «uma campanha de assassínio, estupro, fecundação forçada e outras formas de tortura destinadas a destruir os grupos religiosos e étnicos de muçulmanos bósnios e de croatas bósnios... determinam claramente a violação da lei internacional que prescreve o GENOCÍDIO.

Desta forma, as pessoas responsáveis pelos horrores, que estão sujeitas à jurisdição do tribunal, serão levadas perante a justiça no contexto dos princípios preclaros e oficializados da lei internacional, e esta é a tarefa que somos chamados a cumprir nos últimos dias desta Conferência. Tendo em vista este empreendimento, a Santa Sé torna extensiva a sua mais sincera cooperação e aprecia a participação de todas as pessoas de boa vontade.

A dificuldade que se apresenta a todos nós é que estes abomináveis crimes contra crianças, mulheres, famílias e comunidades foram cometidos na Bósnia, em Ruanda e talvez noutras partes. A boa notícia é que actualmente a Comunidade internacional tem a capacidade de levar perante a justiça as pessoas que os cometeram e de desencorajar aquelas que no futuro os possam cometer.

Senhor Presidente, estou grato pela indulgência da sua pessoa e desta casa.

Obrigado!

 

 

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