CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA HOMILIA DO CARDEAL JOSÉ SARAIVA MARTINS 7 de Fevereiro de 2002
São conhecidas as numerosas e fortes oposições, através das quais o Papa Mastai orientou, com constância indómita e mão segura, a barca da Igreja do seu tempo. Mas estes contrastes serviram para realçar a sua profunda espiritualidade. Foi o que o actual Pontífice recordou na homilia da sua beatificação, a 3 de Setembro de 2000: "Mas precisamente no meio destes contrastes brilhou mais resplandecente a luz das suas virtudes: as prolongadas tribulações fortaleceram a sua confiança na divina Providência, de cujo soberano domínio sobre as vicissitudes humanas ele jamais duvidou". Nascia aqui a profunda serenidade de Pio IX, mesmo no meio das incompreensões e dos ataques de tantas pessoas hostis. Gostava de dizer a quem estava perto dele: "Nas coisas humanas é necessário contentar-se em fazer o melhor que se pode e no resto abandonar-se à Providência, que curará os defeitos e as insuficiências do homem"" (Homilia, 3 de Setembro de 2000). Estas palavras do Papa deixam vislumbrar a verdadeira grandeza da personalidade espiritual, sacerdotal e pastoral do nosso Beato, a sua estatura de homem e de Pontífice e o seu papel extraordinário na história da Igreja. Se não tivesse uma fé tão profunda e uma desmedida confiança na Providência e na assistência do Espírito Santo na história e na vida da Igreja, seria vencido pelos acontecimentos dramáticos que se verificaram durante o seu longo Pontificado. Contudo, não só não se deixou tomar pelo desânimo nem pela depressão, como levou a Igreja a fazer-se ao largo no mar tempestuoso do mundo, tornando-a maior e mais amada. Ele esperou "contra spem". Esta fortaleza só se explica à luz da sua intensa vida espiritual. Desde o início do seu sacerdócio, propôs-se: "Toda a minha obra em Deus, com Deus e por Deus". Como sacerdote, bispo e Sumo Pontífice, o nosso Beato foi autenticamente um "homem de Deus"; homem de oração assídua, cujo único desejo era a glória de Deus e o bem da Igreja; homem que compreendeu e viveu profundamente o princípio de S. Tomás de Aquino, para quem "o amor a Deus não é ocioso. Se existe, realiza grandes coisas. Se rejeita agir, não é amor. Com efeito, o testemunho da acção é a prova do amor" (S. Tomás de Aquino, Sull'Epistola agli Ebrei, Lett. 12, Ed. CAI, n. 211). "O contacto com Jesus Cristo vivo na Eucaristia afirma um autor é o elemento fulcral da vida interior de Pio IX, de cuja fonte brotaram as suas virtudes, a misteriosa energia divina que o levou ao heroísmo, hoje reconhecido pela Igreja. Duas datas assinalaram o período luminoso da sua interioridade eucarística: a Primeira Comunhão e o 75º aniversário da mesma, data esta que ele quis celebrar com solenidade extraordinária, somente cinco dias antes da sua partida para a eternidade. A Eucaristia sempre foi o místico refúgio quotidiano do seu espírito, especialmente nos momentos mais difíceis" (Mons. Angelo Menicucci, em: "Riparazione Eucaristica", Loreto, Agosto/Setembro de 2000). Ele viveu intensamente a piedade eucarística, em todas as suas formas. Em primeiro lugar, na celebração diária da Santa Missa, com um fervor inusitado que deixava vislumbrar toda a sua fé, na adoração diurna e nocturna, na sua capela particular e nas igrejas que encontrava ao longo do seu caminho, quando saía para passear por Roma, assim como na máxima importância que atribuía à solenidade do Corpus Christi, em que participava com o ostensório nas mãos, até mesmo quando era Papa. Pio IX ofereceu uma contribuição singular e dificilmente calculável para a descoberta da presença real de Jesus eucarístico e para a difusão e o reflorescimento da piedade eucarística, que encontrará o seu pleno desenvolvimento nos seus sucessores, sobretudo em São Pio X. As testemunhas afirmam que, à noite, o Papa Mastai Ferretti descia com frequência, a pé, do Quirinal para a Praça de São Silvestre, e na igreja do mesmo nome presidia à adoração eucarística com homilia e a Bênção solene; depois, subia a ladeira e voltava para o Quirinal acompanhado de multidões de crianças que o seguiam como um normal Pároco da Urbe. Como Papa, encontrava sempre na Eucaristia o seu conforto espiritual quotidiano e a fonte de energia de que tinha necessidade para libertar o Papado dos vínculos temporais e o devolver aos tempos novos com um prestígio renovado. Certa vez, disse a duas pessoas que tinha introduzido na sua capela particular: "Também o pobre Papa tem necessidade de estar um pouco a sós com Jesus; tenho tantas coisas a dizer-lhe, tantas luzes a pedir-lhe, tantos conselhos e tantas graças". Depois da adoração, abriu o tabernáculo, mostrou dentro da sua pequena porta um magnífico monograma de Jesus, feito de diamantes, e disse: "Aqui deposito aquilo que possuo de mais belo e precioso: tudo por Ele, que é o grande Senhor e Mestre". Assumiu os cuidados dessa capela, preocupando-se pessoalmente com a lâmpada ao Santíssimo Sacramento. Outra testemunha recorda que ele se preparava com esmero para a celebração da Eucaristia, a que fazia seguir sempre uma prolongada acção de graças. E o fervor com que celebrava o Sacrifício divino era admirável. De resto, em relação à doutrina jansenista, favoreceu a comunhão frequente, manifestando a sua satisfação aos bispos que a promoviam. Enfim, recomendava profundamente a adoração perpétua, que se ia espalhando nos vários países dos continentes europeu e americano. Com efeito, ele dizia que é "do Coração de Jesus que a Igreja e a sociedade devem esperar a salvação": esta era a sua convicção. Como Papa, consagrou a igreja do Sagrado Coração em Roma (1875) e, em seguida, consagrou-lhe todo o mundo católico, antecipando a solene consagração decidida pelo seu Sucessor, Leão XIII. No dia 25 de Agosto de 1856, tornou obrigatória a festividade do Sagrado Coração, alargando-a a toda a Igreja. Nos derradeiros anos da sua vida desejou fundar em Roma, em Castro Pretório, o mencionado Santuário em honra do Sagrado Coração de Jesus, que somente Leão XIII levará à sua completa realização no mês de Maio de 1887. A convergência da devoção ao Sagrado Coração na Eucaristia constituiu sempre um dos elementos fundamentais da espiritualidade de venerando Sumo Pontífice, conhecendo e vinculando esta prática ao seu exacto ponto de origem. Em síntese, a espiritualidade do Beato Pontífice de Senigallia é fortemente mariana. Na homilia da sua beatificação, o Papa recordou que: "Nos momentos de provações, Pio IX encontrou apoio em Maria, da qual era muito devoto. Ao proclamar o dogma da Imaculada Conceição, recordou a todos que nas tempestades da existência humana brilha na Virgem a luz de Cristo, mais forte que o pecado e a morte" (Homilia, n.2). A devoção a Nossa Senhora pode considerar-se a característica predominante da espiritualidade do nosso Beato; e ela não foi outra coisa senão um caminho mais fácil para Cristo. A renovação espiritual mariana, particularmente intensa neste século, a ponto de influir positivamente sobre a piedade popular, tornando-a mais cristocêntrica, encontra a sua origem na devoção de Pio IX a Nossa Senhora. Aquela renovação da Igreja na santidade do Filho Jesus Cristo encontra a sua inspiração no modelo da resposta de fé de Maria Santíssima, Mãe da Igreja a quem, durante o Grande Jubileu do Ano 2000, João Paulo II confiou a humanidade, segundo o pedido feito durante as Aparições de Fátima, há 83 anos (cf. Giorgio Rumi, em: ed. quot. de L'Osservatore Romano de 11 de Outubro de 2000, pág. 1). Concluindo, a espiritualidade de Pio IX estava profundamente enraizada e fundada na Eucaristia, no Sagrado Coração. "Se há uma coisa sobre a qual todos deveriam concordar, defensores e críticos, é o facto de que ele foi sempre um presbítero exemplar: reflexo das mais lindas virtudes cristãs, sacerdortais" (cf. B. Gherardini, Il Beato Pio IX, studi e ricerche, Prato, ed. Pro Verbo 2001, pág. 217) e pastorais. Ele sabia muito bem que os cordeiros e as ovelhas da grei de Cristo não pertencem a Pedro, mas ao Senhor Ressucitado, assim como no-lo recordou a maravilhosa página evangélica, proclamada nesta solene concelebração. Eles são confiados a Pedro, para que os conserve em nome do seu amor total a Jesus Cristo. O Beato Pio IX é um grandioso paradigma, precisamente no exercício deste munus pastorale que é, como Santo Agostinho dizia, "amoris officium". Agora, compete-nos a nós pôr em prática esta lição extremamente persuasiva e dar ao Senhor a resposta de Pedro que, muitas vezes, como é lícito pensar, o nosso Pio IX terá repetido: "Domine, tu omnis nosti, tu scis quia amo te". Os Santos são-nos oferecidos também por este motivo, para nos ajudar a amar o Senhor em maior medida e, sem dúvida o Beato Pio IX, que neste dia invocamos com confiança renovada, não deixará de dar ouvidos às nossas esperanças.
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