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CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA
E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA

REFLEXÕES DE D. FRANC RODÉ

A vida consagrada na escola da Eucaristia


No início deste terceiro milénio da era cristã é urgente reflectir juntos, a fim de reconhecer a novidade que o Senhor da história inspira hoje à vida consagrada.

Os problemas morais e sociais, tão numerosos e muitas vezes dramáticos, interpelam-nos como Igreja, como Institutos de vida consagrada e Sociedades de vida apostólica. Estimulam-nos a manter viva no mundo "a forma de vida que Jesus, supremo consagrado e missionário do Pai para o seu Reino, abraçou e propôs aos discípulos que o seguiam" (1).

Unidos a Cristo na sua consagração ao Pai, nós não cessamos de procurar o seu rosto; desejamos permanecer com Ele, haurir por meio d'Ele, como a Samaritana do Evangelho, da fonte de água viva, para saciar a nossa sede da sua presença.

Participando da sua missão, sentimo-nos arrebatados pela compaixão ao ouvir o "brado dos pobres" que pedem justiça e solidariedade, e como o bom Samaritano da parábola, comprometemo-nos a dar respostas concretas e generosas.

Contudo, estas duas forças, ou seja o desejo de permanecer com Cristo e a compaixão que nos estimula para a humanidade, por vezes, não estão em convergência mas em contraposição.

Unidade de coração e de espírito

A pressão exercida pela cultura dominante, que apresenta com insistência um estilo de vida fundado na lei do mais forte, no lucro fácil e sedutor, na desagregação dos valores da pessoa, da família e da comunidade social, influenciam inevitavelmente o nosso modo de pensar, os nossos projectos e as perspectivas do nosso serviço, correndo o risco de os esvaziar da motivação da fé e da esperança cristãs que os tinham suscitado: os pedidos de ajuda, de apoio e de serviço, numerosos e prementes, que os pobres e os excluídos da sociedade nos fazem, levam-nos a procurar soluções que estejam na lógica da eficiência, do efeito visível e da publicidade.

Desta forma, a vida consagrada corre o risco de ser incapaz de expressar as razões fortes da fé e da esperança que a animam. Dificilmente consegue manifestar os valores evangélicos, dado que a sua proposta de razões autênticas de vida e de esperança muitas vezes é oculta.

Evidentemente o problema está sobretudo no coração das pessoas consagradas. Muitas vezes não conseguem encontrar as palavras justas para testemunhar Cristo de modo claro e convicto, porque "ao lado do impulso vital, capaz de testemunho e de doação até ao martírio, a vida consagrada conhece também a insídia da mediocridade na vida espiritual, do aburguesamento progressivo e da mentalidade consumista. A condução complexa das obras, mesmo sendo exigida pelas novas situações sociais e pelas normativas dos Estados, juntamente com a tentação do eficientismo e do activismo, correm o risco de ofuscar a originalidade evangélica e de enfraquecer as motivações espirituais. A predominância de projectos pessoais sobre os comunitários pode afectar profundamente a comunhão da fraternidade" (2).

É preciso reconhecer que com muita frequência não conseguimos fazer uma síntese satisfatória da vida espiritual e da acção apostólica. Contudo, isto é absolutamente necessário se queremos enfrentar o desafio do "novo" para o qual Cristo e a Igreja nos convidam e que a humanidade espera. De uma forma dilacerada e fragmentada, impõe-se a todos uma profunda e autêntica unidade de coração, de espírito e de acção.

Na luz da Eucaristia

Mesmo se o episódio da Samaritana no poço de Jacob orienta mais para a dimensão espiritual da contemplação e o episódio do Samaritano faz pensar na dimensão caritativa da assistência, estas duas imagens evangélicas propostas à nossa reflexão têm certamente vínculos profundos.

Realçando as ligações e concentrando a atenção em Cristo, aquele que está sentado à beira do poço de Jacob e aquele que "não considerou a sua semelhança com Deus um tesouro cioso" (cf. Fl 2, 6), mas desceu para nos curar com o óleo da misericórdia e com o seu Sangue, encontramos uma fonte única da qual tirar com segurança a água viva, um lugar no qual a consagração e a missão se tornam uma só coisa, uma luz e uma força capaz de gerar o "novo" na vida consagrada. Esta fonte única, este lugar evangélico é o Sacramento da Eucaristia.

O Santo Padre tinha indicado isto insistentemente por ocasião da Jornada da Vida Consagrada de 2 de Fevereiro de 2001, dizendo: "Caríssimos, encontrai-o, e contemplai-o de maneira totalmente especial na Eucaristia, celebrada e adorada todos os dias, como fonte e ápice da existência e da acção apostólica" (3).

A Exortação Apostólica pós-Sinodal Vita consecrata recorda por sua vez que: "A Eucaristia, memorial do sacrifício do Senhor, coração da vida da Igreja e de todas as comunidades, plasma a partir de dentro a oblação renovada da própria existência, o projecto de vida comunitária, e a missão apostólica. Todos temos necessidade do viático quotidiano do encontro com o Senhor para inserir a quotidianidade no tempo de Deus que a celebração do memorial da Páscoa do Senhor torna presente" (4).

Na Eucaristia as exigências fundamentais da vida consagrada encontram o seu modelo e o seu cumprimento perfeito.

Exigências de "renovação"

Apesar do clima de desencorajamento e de resignação que se observa em algumas comunidades, é inegável que as pessoas consagradas sentem uma necessidade profunda de "novo", a expectativa de uma mudança, de um futuro a ser vivido e partilhado. Penso também que até quem diz a si próprio: "para mim não há mais nada a esperar", na realidade conserva no coração a esperança de uma novidade possível. Isto é válido quer para os indivíduos, quer para as comunidades.

Nos últimos anos muitos capítulos gerais comprometeram-se na busca de novos campos de acção e de novos contactos para expressar a identidade carismática do seu Instituto. Procuraram novos modos de viver a vida fraterna em comunidade, dedicaram-se a uma escuta renovada e a um compromisso mais dinâmico para responder aos numerosos pedidos de ajuda provenientes das situações de pobreza moral e material que afligem a humanidade.

Contudo, este compromisso no novo nem sempre aconteceu seguindo critérios de discernimento evangélicos. Por vezes a "renovação" foi confundida com a adaptação à mentalidade e à cultura dominantes, correndo o risco de esquecer os valores autenticamente evangélicos. É inegável que "a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida" (1 Jo 2, 16) próprias do mundo e da sua cultura, exerceram a sua influência desorientadora, gerando conflitos graves no interior da comunidade e nas opções apostólicas, nem sempre fiéis ao espírito e às inspirações originais do instituto.

Como sempre na história, a Igreja coloca-se entre o sopro do Espírito, que abre novos caminhos, e as seduções do mundo, que tornam o caminho incerto e podem conduzir ao erro.

Por este motivo devemos ir ao "poço" da Eucaristia. Só uma leitura eucarística das necessidades do tempo nos pode ajudar a interpretar a qualidade das novas formas de as enfrentar.

Jesus na Eucaristia aguarda-nos e chama-nos: "Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e aliviar-vos-ei" (Mt 11, 28). Melitão de Sardis comenta assim: "Vinde, portanto, todos os povos, oprimidos pelos pecados e recebereis o perdão. De facto, sou eu o vosso perdão, sou eu a Páscoa da redenção. Sou eu o Cordeiro imolado por vós, o vosso lavacro, a vossa vida, a vossa ressurreição, a vossa luz, a vossa salvação, o vosso rei. Eu elevo-vos aos céus. Ressuscitar-vos-ei e mostrar-vos-ei o Pai que está nos céus. Elevar-vos-ei com a minha direita" (5).

A "paixão por Cristo" deve levar as pessoas consagradas a colocar no centro da sua existência e das suas actividades Jesus, presente e operante na Eucaristia. À volta da sua mesa, as nossas orientações apostólicas terão maior garantia de fidelidade ao seu espírito e uma capacidade mais certa de fazer as opções justas.

Jesus veio anunciar a "Boa Nova" e repete-nos hoje o que disse ao Apóstolo Pedro, que regressava desanimado pela pesca infrutuosa: "Duc in altum" (6).

É o desafio da Eucaristia. A vida consagrada reencontra a sua identidade quando deixa transparecer nos factos a "memória viva do modo de existir e de agir de Jesus como Verbo encarnado diante do Pai e dos irmãos. Ela é tradição da vida e da mensagem do Salvador" (7).

Esta perspectiva eucarística dá renovado vigor às motivações espirituais e uma nova vitalidade à acção apostólica, e leva ao seu cumprimento a consagração baptismal, fundamento da identidade e da missão das pessoas consagradas.

Em particular, considero que hoje Cristo, a Igreja e a humanidade lancem à vida consagrada três grandes apelos: afirmação da primazia da santidade; fortalecimento do sentido eclesial; testemunho da força da caridade de Cristo. A Exortação Apostólica Ecclesia in Europa refere-se a isto, recordando que há "sempre necessidade da santidade, da profecia, da actividade de evangelização e de serviço das pessoas consagradas"(8).

Afirmar a primazia da santidade

Afirmar sobretudo a primazia da santidade na vida cristã: eis a mensagem fundamental do Santo Padre para o terceiro milénio.

A santidade, na rica variedade das suas formas e dos seus caminhos, desde sempre constitui o objectivo primário de quantos, «deixada a vida segundo o mundo, procuraram Deus e a ele se dedicaram, "nada antepondo ao amor de Cristo"»(9). Sobretudo hoje, no clima de laicismo em que vivemos, o testemunho de uma vida totalmente consagrada a Deus é uma recordação eloquente que Deus é suficiente para preencher o coração do homem.

Na Novo millennio ineunte, o Santo Padre afirma: "em primeiro lugar, não hesito em dizer que o horizonte para o qual deve tender todo o caminho pastoral é a santidade" (10). Em seguida acrescenta que partir da santidade "significa exprimir a convicção de que, se o Baptismo é um verdadeiro ingresso na santidade de Deus através da inserção em Cristo e da habitação do seu Espírito, seria um contra-senso contentar-se com uma vida medíocre, pautada por uma ética minimalista e uma religiosidade superficial" (11).

A vida consagrada, nas suas diversas formas, em todos os tempos e lugares, foi suscitada pelo Espírito Santo precisamente para oferecer às comunidades cristãs a imagem da perfeição evangélica.

É preciso tornar mais vigoroso o caminho no seguimento de Cristo, que por meio da Encarnação se fez em tudo semelhante ao homem, excepto no pecado. De maneira análoga, através da inculturação efectuada com sabedoria, a vida consagrada assimila os valores da sociedade na qual está chamada a servir, excluindo o que está marcado pelo pecado e inserindo nela a força vital do Evangelho. Por este caminho, na medida em que um Instituto de vida consagrada consegue integrar os valores positivos de uma determinada cultura, torna-se instrumento da sua abertura às dimensões da santidade cristã para um povo inteiro (12).

Constantemente inclinadas para realizar o "desígnio de Deus acerca do homem", as pessoas consagradas colocam-se na linha do ideal cristão comum e não fora ou acima dele. "Com efeito, toda a Igreja espera muito do testemunho de comunidades ricas "de alegria e de Espírito Santo" (Act 13, 52)" (13). "De facto, se é verdade que todos os cristãos são chamados "à santidade e à perfeição do próprio estado", as pessoas consagradas, graças a uma "nova e especial consagração" têm a missão de fazer resplandecer a forma de vida de Cristo, através do testemunho dos conselhos evangélicos de todo o Corpo de Cristo" (14).

A vocação comum à santidade de todos os cristãos nunca pode ser um impedimento, mas deve ser um estímulo à originalidade e ao contributo específico dos religiosos e das religiosas ao esplendor da santidade de toda a Igreja.

Ilumina o caminho

A Eucaristia ilumina o caminho e dá vitalidade à via da santidade da Igreja e de todos os cristãos.
Através da Eucaristia o sacrifício de Jesus torna-se presente em todos os tempos e lugares; é o seu acto de abandono ao Pai, o seu remeter-se totalmente à humanidade que nos indica o caminho da santidade. A Eucaristia repropõe, para toda a humanidade e para cada um, o modelo segundo o qual Jesus se "entregou" aos homens e o modo como se "remeteu" ao Pai na sua morte. Na Eucaristia ele é eternamente aquele que "se dá a si mesmo" e que se doa à humanidade como graça. Nela, as pessoas consagradas aprendem a dizer com Paulo: "Estou crucificado com Cristo! Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e Se entregou a Si mesmo por mim" (Gl 2, 20).

Aqui a identidade e a missão da vida consagrada manifestam-se em toda a sua clareza, como continuidade da missão de Cristo e em completa dependência dele. Assim, a paixão por Cristo transforma-se em energia activa, em fervor pela humanidade.

Na celebração eucarística, segundo as características próprias das pessoas e das Instituições, Jesus ensina a oferecer no tempo presente o seu sofrimento e a sua morte pela salvação da humanidade. A sua paixão e a sua morte tornam-se o acontecimento fundante e inspirador do modo de ver e de agir das pessoas consagradas, fazendo de cada momento um momento de graça. Realiza-se assim a exortação de São Paulo a levar "sempre no nosso corpo os traços da morte de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste no nosso corpo" (2 Cor 4, 10).

Na Eucaristia cria-se uma estreita relação entre o nosso corpo e o Corpo de Jesus, Corpo colocado nas mãos dos pecadores e entregue à morte, para que a glória eterna do Pai possa resplandecer no rosto do Filho. De igual modo, o nosso corpo, configurado com o de Jesus, dá a sua contribuição ao desígnio de amor e de salvação do Pai, sacrificando-se por amor e mostrando o caminho da salvação.

Eis o rosto autêntico da santidade que a vida consagrada está chamada a tornar presente hoje.

Fortalecer o sentido eclesial

O segundo forte apelo lançado à vida consagrada é dar um sentido mais amplamente eclesial à sua vida e às suas obras, doando às comunidades a característica de "casas e escolas de comunhão" (15).

O caminho percorrido nos últimos anos no âmbito do estudo da identidade da vida consagrada é certamente notável; contudo, os dados contidos nos documentos do Magistério, em particular na Exortação Apostólica Vita consecrata e nas duas Instruções do nosso dicastério, Recomeçar a partir de Cristo parece que ainda não penetraram na consciência nem das pessoas consagradas nem das comunidades cristãs.

Hoje, na Igreja, a noção da "comunhão" tornou-se o "princípio hermenêutico" mais importante (16). A identidade dos membros da Igreja já não se define a partir deles próprios, mas dos relacionamentos eclesiais e dos modos específicos de participar na missão única de Cristo e da Igreja (17). A afirmação da identidade pessoal é sempre fruto da qualidade dos relacionamentos instaurados com os irmãos e as irmãs na fé.

Portanto, torna-se indispensável cuidar da qualidade dos relacionamentos eclesiais com todos os que, guiados pelo Espírito de Deus e "obedecendo à voz do Pai [...], seguem a Cristo pobre, humilde e carregado com a cruz, para merecerem participar na Sua glória" (18).

Isto levará os consagrados a fazer uma experiência forte do "êxodo". Libertados das estreitezas do eu, serão chamados a sair de si mesmos e a procurar juntos o sentido da sua existência na comunidade e da sua acção apostólica. Só numa dinâmica de relacionamentos eclesiais se revela e se fortalece a identidade dos dons carismáticos próprios dos Institutos.

Há uma imagem usada com frequência pelas famílias religiosas para representar a sua história: a da árvore, da qual o Fundador representa o tronco e os Superiores-Gerais ou os santos são as ramificações. Em 1586 em Veneza foi publicada uma obra (19), na qual era retomada a imagem da árvore, mas unida à da barca. Nesta imagem, a barca representa a Igreja sobre a qual tinha sido elevada uma árvore enorme que se ramificava como uma planta. Navegando num mar agitado, esta barca recebia a ajuda dos santos religiosos para chegar ao porto. A imagem ilustra muito bem como a vida consagrada se desenvolve quando está unida de maneira vital ao seu tronco e quando afunda as raízes no terreno fértil da Igreja.

As duas imagens, ou seja, a árvore e a barca, indicam dois modos de conceber a vida consagrada. A árvore sugere a ideia de estabilidade, mas faz suspeitar que a família religiosa poderia procurar a autocelebração. A barca, ao contrário, introduz a ideia de uma vida consagrada entendida como um dinamismo e um serviço a prestar à Igreja para chegar ao "porto".

Para uma vitalidade renovada

Uma relação mais dinâmica com Cristo e com o seu Corpo que é a Igreja coloca o processo de renovação dos Institutos de vida consagrada e das Sociedades de vida apostólica na justa via. De facto, não se trata de "refundar" na lógica das "urgências humanas", mas sim, de fazer-se acompanhar por Cristo, como os "discípulos de Emaús" no dia de Páscoa, deixando que a sua palavra aqueça o coração, e que o "pão partido" abra os nossos olhos à contemplação do seu rosto. Só assim o fogo da sua caridade será bastante ardente para estimular cada pessoa consagrada a tornar-se dispensadora de luz e de vida na Igreja e entre os homens.

Além disso, nesta perspectiva, o caminho de renovação jamais será um mero voltar às origens, mas uma recuperação do fervor das origens, da alegria do início da experiência, para uma reapropriação inovativa do carisma. Uma relação mais aberta e mais livre às origens traduz-se, por meio de um crescimento e de um progresso autênticos, na compreensão e na realização do dom do Espírito que deu vitalidade a uma família de vida consagrada.

Qualquer renovação se traduzirá num dom feito à Igreja para a ajudar a alcançar o "porto". As pessoas consagradas são chamadas a enfrentar, juntamente com os irmãos e as irmãs, os perigos da navegação, a realizar na barca e a não permanecer na margem das suas certezas. Elas não são "faróis", mas marinheiros na barca da Igreja. O farol não conhece o perigo, enquanto que o marinheiro o vive todos os dias, é o seu pão quotidiano, o seu orgulho.

A vida consagrada, firmemente radicada no terreno fértil da Igreja e inserida de maneira vital na teologia e na espiritualidade dos conselhos evangélicos, segundo os ensinamentos de Vida consagrada (20), encontrará luz e vigor para as opções corajosas necessárias para responder de maneira eficaz aos apelos que a humanidade faz. Confrontando-se com as fontes dos carismas e dos textos constitucionais que lhe são próprios, ela repartirá com impulso para novas interpretações, mas não menos exigentes. O dinamismo renovado de uma vida espiritual mais eclesial e mais comunitária, mais generosa e mais iluminada nas suas opções apostólicas (21), oferecerá às pessoas consagradas a ocasião para dar nova vida às suas raízes no tecido das comunidades cristãs nas quais trabalham.

Nesta busca de uma vitalidade renovada, a Eucaristia é a fonte e a escola de uma formação conforme com as características da fé e do serviço próprias de cada um. O mistério eucarístico educa maravilhosamente para encontrar o espaço e o modo para reafirmar o respeito pelas tradições sadias e predispõe para a escuta das novas vozes que se elevam da humanidade ferida e oprimida pelo tempo actual.

Durante a celebração da Eucaristia, Jesus repete ainda: "fazei isto em memória de mim" (Lc 22, 19). Toda a Sagrada Escritura, de facto, é construída sobre o "fazer memória". "Recorda-te", é uma das expressões fundamentais da Aliança. Deus pede ao seu povo que tenha esta disposição de "coração" fundamental e total, mediante a qual nos confiamos e recomendamos completamente a Ele na escuta obediente da sua Palavra. Sem a recordação do êxodo e da páscoa, Israel, o povo de Deus, não teria existido e não teria tido a mínima consistência. A memória do passado, dos factos e das palavras, interpreta os acontecimentos, tornando-se fonte de discernimento no presente e orientando "profeticamente" para o futuro.

"Fazer memória" não significa recordar com saudades o que já não existe e que de qualquer forma não pode ser reproposto. "Fazer memória", em sentido bíblico, significa memorial eficaz que renova, realiza e põe em prática o que recorda, fazendo-se contemporâneo do acontecimento.

Aprender a "fazer memória" significa, antes de tudo, reencontrar o sentido do "dom", da "escuta". A Eucaristia, Páscoa de Jesus, sua presença, sua morte sacrifical, sua ressurreição, para nós é alimento, fonte de vida, comunhão com esse dom, auge e centro da nossa vida de baptizados e de consagrados.

A Eucaristia liga-nos aos acontecimentos e ao dinamismo das origens da Igreja e dos nossos Institutos; torna-os activos no coração e na vida das mulheres e dos homens de hoje. É a realização do desejo de Jesus. "Tenho ardentemente desejado comer convosco esta páscoa, antes de padecer" (Lc 22, 15).

Cada Instituto de vida consagrada é uma realização na história deste desejo de Jesus. Só aprendendo a "fazer memória" os Institutos encontrarão o caminho para enfrentar o desafio de reencontrar as dimensões reais da sua identidade na Igreja e para reavivar o zelo missionário, a fim de servir com humildade e fervor a obra da nova evangelização que o mundo espera da Igreja.

Testemunhar a força da caridade de Cristo

O terceiro apelo ou desafio enfrentado hoje é ser "sinal da Páscoa do Senhor no meio dos homens" através da caridade.

O compromisso por transformar a realidade social com a força do Evangelho sempre foi um desafio e continua a sê-lo também agora, no início do terceiro milénio da era cristã.
O anúncio de Jesus Cristo, a "Boa Nova" da salvação, do amor, da justiça e da paz, nem sempre é fácil de acolher no mundo actual. Contudo o homem, hoje, tem necessidade como nunca do Evangelho, da fé que salva, da esperança que ilumina, da caridade que se faz doação (22).

A história coloca-nos hoje diante de tantos novos fenómenos que alimentam quer as esperanças de uma vida mais plena, quer o receio dos sofrimentos e da morte; fenómenos que falam de progresso e de liberdade, procurando esquecer os sinais profundos das novas escravidões e as lutas entre os homens, os povos e as nações. Neste "habitat" os consagrados correm o risco de que a justa tomada de posição em favor dos pobres e dos oprimidos seja impedida pela lógica dos contrastes e da luta sem piedade, e estimule para um "horizontalismo" limitado, cheio de amargura e esvaziado de uma esperança autêntica, que em vez de aproximar, afasta de Cristo, único Salvador do homem.

Hoje, a grande maioria das pessoas, sempre menos abertas a um futuro escatológico, vivem na ausência da esperança. A vida actual parece-lhes a única ocasião para aproveitar o máximo: sempre mais, sempre mais velozmente. Nesta atitude existe algo desesperado, sobretudo quando a realização dos desejos parece impossível, como acontece quase sempre.

Esta situação interpela de maneira particular as pessoas consagradas, que fizeram do futuro a sua profissão de fé e da esperança escatológica o motor da sua existência.

Aqui a missão profética da vida consagrada assume um relevo particular. Ela desempenha, neste âmbito, um ministério específico que, por analogia, poderíamos num certo sentido definir "sacerdotal". De facto, na Instrução Recomeçar a partir de Cristo lemos: "À imitação de Jesus, aqueles que Deus chama para o seguir são consagrados e enviados ao mundo para continuar a sua missão: aliás, a própria vida consagrada, sob a acção do Espírito Santo, torna-se missão. Quanto mais os consagrados se deixam conformar com Cristo, tanto mais o tornam presente e operante na história para a salvação dos homens. Abertos às necessidades do mundo na óptica de Deus, têm como objectivo um futuro com sabor de ressurreição, sempre dispostos a seguir o exemplo de Cristo que veio entre nós para dar a vida em abundância (cf. Jo 10, 10)" (23).

Também para a caridade é a Eucaristia o lugar no qual as pessoas consagradas podem haurir um renovado vigor profético para a vida comum e o serviço aos homens. Ela torna contemporânea a Cruz sobre a qual Cristo se consome, "desce ao inferno", faz-se solidário com todos os que foram, que são e que serão prisioneiros do pecado e da morte, para que, n'Ele, todos os que estão distantes, se possam tornar irmãos e aproximar-se do Pai. Nesta escola, as pessoas consagradas aprendem o zelo autêntico pela humanidade e ouvem o convite a viver a sua missão como partilha da morte que caracteriza o corpo e a alma dos homens e das mulheres, para os abrir a uma esperança além da morte.

Iluminada pela celebração eucarística, a vida consagrada aprenderá a fazer-se "bom Samaritano" à maneira de Cristo e, com o Espírito de Cristo, saberá propor caminhos de esperança a todos os homens que encontrar no seu caminho. Na celebração eucarística, fazer memória da morte violenta de Jesus transforma-se em "não-violência", em doação espontânea de si. Jesus não é sacrificado; ele sacrifica-se. O princípio da oposição deixa o lugar ao princípio da solidariedade.

A Eucaristia é ao mesmo tempo, e inseparavelmente, sacrifício, memória, alimento. O Verbo que se faz carne oferece-se em sacrifício. Quem adere com fé a tal mistério entra em comunhão com este dom de Cristo e torna-se por sua vez "dom", dado que na celebração eucarística a comunhão está ligada ao sacrifício de Cristo (cf. Jo 6, 49-58). Quando não se aceita este dom, esta entrega de si ao Senhor na Eucaristia, faz-se reviver o drama e a dilaceração da traição de Judas; faz-se como as pessoas que, na Sinagoga de Cafarnaum, ao anúncio do dom da carne e do sangue pela vida do mundo, renunciam a seguir Jesus (cf. Jo 6, 64-70).

Ao contrário, qualquer actividade pastoral, qualquer serviço aos pequeninos, aos pobres, aos doentes, aos abandonados na margem da estrada quando começam por uma participação profunda no Mistério Eucarístico, tornam-se a realização do mandamento de Jesus: "Fazei isto em memória de Mim". O fogo da caridade de Cristo envolve tudo e torna-se compromisso e doação de si. A vida consagrada encontra a força para sair dos "bloqueios", para superar as barreiras, para vencer o fechamento em si mesmos, para iluminar as leituras unilaterais da realidade.

O "sacrificium laudis" das pessoas consagradas exprimir-se-á assim com um novo fervor pela humanidade e estimulá-las-á a completar na sua carne "o que falta aos sofrimentos de Jesus". Servir, ser pequeninos, ser alegres, terá sempre como raiz e fundamento a Páscoa do Senhor, acolhida, amada e suportada para a salvação de todos.

Rumo a uma Páscoa universal

Não são só os religiosos os únicos a serem tocados por esta energia eucarística que tudo renova, mas todo o universo. A vida que Cristo transmite, através da Eucaristia vai muito além. A sua influência alcança qualquer dimensão material, toda a criação. Toda a criação, de certa forma, está presente no pão e no vinho da Eucaristia, elementos da natureza, cultivados pelo homem. Na Eucaristia, a criação e o trabalho do homem estão profundamente unidos na história da salvação. Toda a criação espera com impaciência a revelação do Filho de Deus (cf. Rm 8, 19) e o homem, transformado pela Eucaristia, trabalhará para renovar todo o universo, levando-o consigo rumo à plenitude da vida. A vida consagrada encontra assim na Eucaristia a luz para acompanhar na verdade o caminho daqueles que procuram uma relação mais fecunda com a natureza, sem idealizações nem instrumentalizações, dando a cada coisa o justo valor na lógica da "doação" e do "serviço".

Recomeçar a partir da formação

Há um último aspecto de importância fundamental. Em todos os sectores da vida eclesial a formação representa um elemento decisivo. Isto é válido de modo particular para as pessoas consagradas. Desde a formação inicial será importante educar as pessoas para empregar todas as suas energias, as suas capacidades e forças afectivas no seguimento radical de Cristo, descoberto progressivamente como o "único", o "único necessário", Aquele que é fonte de vida e que pode colmar, além de qualquer palavra, o coração de um homem ou de uma mulher.

Do encontro com Aquele que, sendo "de condição divina, não reivindicou o direito de ser equiparado a Deus" (Fl 2, 6), mas humilhou-se até à morte, à morte na cruz, para comunicar a sua divindade e tornar o homem mais semelhante a si, surgirá o "propósito", isto é, o projecto de uma vida permeada pela presença de Cristo, de uma existência polarizada n'Ele, aprendendo a cultivar "os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus" (Fl 2, 5).

A experiência do amor do Senhor, forte e intenso, levará os jovens consagrados a retribuir este amor, de maneira exclusiva e esponsal, de forma que os outros amores e valores desapareçam progressivamente da sua vida. "Mas tudo isso, que para mim era lucro explica São Paulo com palavras que poderiam ser lidas como a síntese de um projecto de vida consagrada reputei-o perda de Cristo. Na verdade, em tudo isso só vejo dano, comparado com o supremo conhecimento de Jesus Cristo, meu Senhor. Por ele tudo desprezei e tenho em conta de esterco, a fim de ganhar Cristo, e n'Ele ser achado" (Fl 3, 7-9).

A profundidade e a totalidade desta paixão por Cristo tornar-se-á, quase espontaneamente, uma participação total e incondicionada à sua paixão pela humanidade. Os jovens consagrados sentirão a necessidade irresistível de anunciar o Evangelho das Bem-Aventuranças a todas as pessoas pobres, desencorajadas e oprimidas; sentir-se-ão estimulados a fazer-se seus companheiros no caminho difícil da vida segundo o estilo discreto e forte de Jesus; abrirão o seu coração à esperança, seguindo o percurso exigente do amor que se oferece.

É necessário rever a formação das pessoas consagradas, que já não se poderá limitar a um só período da vida. Será fundamental, numa realidade que muda a ritmos velozes, desenvolver a disponibilidade para aprender durante toda a vida, em qualquer idade, em qualquer contexto humano, de cada pessoa e cultura, a fim de se poder instruir partindo de cada fragmento de verdade e de beleza que as circunda. Mas será sobretudo necessário aprender a deixar-se formar pela realidade quotidiana, pela própria comunidade, pelos seus irmãos e irmãs, pelas coisas de todos os dias, ordinárias e extraordinárias, pela oração e pelo trabalho apostólico, na alegria e no sofrimento, até ao momento da morte (24).

Conclusão

Que a experiência da Virgem Maria, Mãe de Jesus e Mãe da Igreja, que se deixou formar por todos os acontecimentos da vida do seu Filho divino "conservava todas estas coisas, meditando-as no seu coração" (Lc 2, 19) guie também a vida consagrada, a fim de que persevere na dedicação ao seu Senhor e percorra os caminhos da nova evangelização com caridade generosa e livre.


Notas

1. Vita consecrata, n. 22; cf. Mt 4, 18-22; Mc 1, 16-20; Lc 5, 10-11; Jo 15, 16.

2. Recomeçar a partir de Cristo, n. 12.

3. João Paulo II, Homilia, 2 de Fevereiro de 2001.

4. Recomeçar a partir de Cristo, n. 26: cf. Vita consecrata, n. 95.

5. Melitão de Sardes, Homilia sobre a Páscoa, 2-7.

6. Novomillennioineunte,n.1;cf.Lc 5, 4.

7. Vita consacrata, n. 22.

8. Ecclesia in Europa, n. 37.

9. Vita consecrata, n. 6.

10. Novo millennio ineunte, n. 30.

11. Ibidem, n. 31.

12. Cf. Ecclesia in Africa, n. 87.

13. Vita consacrata, n. 45.

14. Recomeçar a partir de Cristo, n. 13.

15. Cf. Novo millennio ineunte, n. 43; cf. Recomeçar a partir de Cristo, n. 25, 28 e um pouco toda a terceira parte.

16. Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Comunionis notio, Vaticano, 28 de Maio de 1992, n. 3; cf. João Paulo II, Discurso aos Bispos dos Estados Unidos da América, 16 de Setembro de 1987, n. 1.

17. João Paulo II, Exortação apostólica Christifideles laici, n. 8; Pastores dabo vobis, n. 12; Vita consecrata, n. 16 e ss; Pastores gregis, n. 22; Synodos Episcoporum, X Coetus Generalis Ordinarius, O Bispo, servo do Evangelho de Jesus Cristo para a esperança do mundo, Lineamenta, Introdução.

18. ConcílioVaticano II, Lumen gentium, 41.

19. Pietro Rodolfi de Tossignano, Historiarum seraphicae religionis... v. DIP 4, 518.
Cf. Vita consecrata, n. 20-21.

20. Cf. Recomeçara partir de Cristo, n. 20.

21. Cf. PontifícioConselho "Justiça e Paz", Compêndio da Doutrina Social da Igreja, Vaticano, 2004, Apresentação.

22. Recomeçar a partir de Cristo, n. 9.

23. Cf. Recomeçar a partir de Cristo, n. 15.

 

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