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CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA
(dos Institutos de Estudo)

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EDUCAR AO HUMANISMO SOLIDÁRIO

Para construir uma “civilização do amor”
50 anos após a Populorum progressio

Orientações

 

ÍNDICE

Introdução

1. Cenários actuais
2. Humanizar a educação
3. Cultura do diálogo
4. Globalizar a esperança
5. Por uma verdadeira inclusão
6. Redes de cooperação
7. Perspectivas

INTRODUÇÃO

1. Há cinquenta anos, com a Encíclica Populorum progressio, a Igreja anunciava aos homens e às mulheres de boa vontade o alcance mundial adquirido pela questão social [1]. Tal anúncio não se limitava a sugerir um olhar mais amplo mas oferecia um novo modelo ético-social, capaz de abraçar parcelas cada vez maiores da humanidade, onde era preciso trabalhar pela paz, justiça e solidariedade com uma visão capaz de assimilar o horizonte global das escolhas sociais. Os pressupostos desta nova visão ética emergiram uns anos antes, no Concílio Vaticano II, com a formulação do princípio de interdependência global e do destino comum de todos os povos da Terra [2]. Nos anos seguintes, a validade explicativa de tais princípios encontrou numerosas confirmações. O homem contemporâneo experimentou que o que acontece numa parte do mundo pode ter consequências noutras, e que ninguém pode, a priori, sentir-se seguro num mundo onde há sofrimento e miséria. Se, naquela época, se vislumbrava a necessidade de dedicar-se ao bem dos outros como se fosse o próprio, hoje tal recomendação assume uma evidente prioridade na agenda política dos sistemas civis [3].

2. A Populorum progressio, neste sentido, pode ser considerada o documento programático da missão da Igreja na era da globalização[4]. A sabedoria que emana dos seus ensinamentos guia ainda hoje o pensamento e a acção daqueles que querem construir a civilização do «humanismo plenário»[5], oferecendo – no caminho do princípio da subsidiariedade - «modelos praticáveis de integração social» nascidos do encontro profícuo entre «as dimensões individual e comunitária»[6]. Esta integração exprime os objectivos da «Igreja em saída», que «encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação […], acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam»[7]. Os conteúdos deste humanismo solidário precisam ser vividos e testemunhados, formulados e transmitidos[8]num mundo assinalado por múltiplas diferenças culturais, atravessado por visões heterogéneas do bem e da vida, e caracterizado pela convivência de diferentes crenças. Para tornar possível este processo – como afirma o Papa Francisco na encíclica Laudato Si’ «é preciso ter presente que os modelos de pensamento influem realmente nos comportamentos. A educação será ineficaz e os seus esforços estéreis, se não se preocupar também por difundir um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza»[9].

Com o presente documento a Congregação para a Educação Católica visa propor as directrizes principais da educação para o humanismo solidário.

1. CENÁRIOS ATUAIS

3. O mundo contemporâneo, multifacetado e em constante mudança, é atravessado por múltiplas crises. Estas são de várias naturezas: crises económicas, financeiras, de trabalho; crises políticas, democráticas, de participação; crises ambientais e naturais; crises demográficas e migratórias, etc. Os fenómenos provocados por tais crises revelam diariamente o seu carácter dramático. A paz é constantemente ameaçada e, juntamente com as guerras travadas entre exércitos, difunde-se a insegurança causada pelo terrorismo internacional, cujos ataques provocam sentimentos de desconfiança recíproca e ódio, assim como favorece o desenvolvimento de sentimentos populistas, demagógicos, que correm o risco de agravar os problemas, favorecendo a radicalização do conflito entre culturas diferentes. Guerras, conflitos e terrorismo são algumas vezes a causa, outras vezes o efeito das desigualdades económicas e da injusta distribuição dos bens da criação.

4. De tais iniquidades nascem a miséria, o desemprego e a exploração. As estatísticas das organizações internacionais mostram os sinais da emergência humanitária em curso, que diz respeito também ao futuro, se forem analisadas as consequências do subdesenvolvimento e das migrações nas gerações mais jovens. Também não se podem isentar de tais perigos as sociedades industrializadas, onde as áreas de marginalidade aumentaram[10]. De particular relevo é o complexo fenómeno das migrações, presente em todo o planeta, que provoca encontros e conflitos de civilizações, acolhimento solidário e populismos intolerantes e intransigentes. Estamos diante de um processo que foi oportunamente definido como uma mudança de época[11]. Isso revela um humanismo decadente, fundado geralmente no paradigma da indiferença.

5. A lista dos problemas poderia alargar-se, porém as oportunidades que o mundo actual apresenta não podem ser ignoradas. A globalização das relações é também a globalização da solidariedade. Disso tivemos vários exemplos, por ocasião das grandes tragédias humanitárias causadas pela guerra ou em casos de catástrofes ambientais: as correntes de solidariedade e as iniciativas de assistência e de caridade têm envolvido cidadãos de todas as partes do mundo. Do mesmo modo, nos últimos anos surgiram iniciativas sociais, movimentos e associações, em prol de uma globalização mais igualitária, atenta às necessidades dos povos economicamente em dificuldade. Muitas vezes quem funda essas iniciativas - e também participa delas – são os cidadãos das nações mais ricas, os quais poderiam usufruir das vantagens das desigualdades mas, pelo contrário, lutam pelo princípio de justiça social com gratuidade e determinação.

6. É paradoxal que o homem contemporâneo tenha alcançado metas importantes no conhecimento das forças da natureza, da ciência e da tecnologia e, ao mesmo tempo, seja carente de projectos para uma convivência pública adequada, a fim de tornar a existência de todos, e de cada um, aceitável e digna. O que, talvez, ainda falte é o desenvolvimento conjunto das oportunidades civis através de um plano educativo, capaz de explicar as motivações da cooperação num mundo solidário. A questão social, como disse o Papa Bento XVI, é hoje uma questão antropológica[12] que requer uma função educativa que não se pode mais adiar. Por isso, é necessário um “um novo ímpeto do pensamento para compreender melhor as implicações do fato de sermos uma família; a interacção entre os povos da terra chama-nos a esse ímpeto, para que a integração se verifique sob o signo da solidariedade, e não da marginalização”[13].

 

2. HUMANIZAR A EDUCAÇÃO

7. «Conhecedora da humanidade», como descrita pela Populorum progressio [14] cinquenta anos atrás, a Igreja tem seja a missão como a experiência para indicar os percursos educativos adequados aos desafios actuais. A sua visão educativa está ao serviço da realização dos maiores objectivos da humanidade. Tais objectivos foram destacados, previamente, na Declaração Gravissimum educationis: o desenvolvimento harmónico das qualidades físicas, morais e intelectuais finalizados ao gradual amadurecimento do sentido de responsabilidade; a conquista da verdadeira liberdade; a positiva e prudente educação sexual[15]. Ao longo desta perspectiva, intuía-se que a educação devia estar ao serviço de um novo humanismo, no qual a pessoa social estivesse aberta ao diálogo e cooperasse na promoção do bem comum[16].

8. As exigências indicadas pela Gravissimum educationis ainda são actuais. Ainda que as concepções antropológicas baseadas no materialismo, no idealismo, no individualismo e no colectivismo, vivam numa fase decadente, essas exercem ainda uma certa influência cultural. Geralmente tais visões concebem a educação como um caminho de formação do indivíduo à vida pública, na qual entram em acção diferentes correntes ideológicas, competindo entre si pela hegemonia cultural. Nesse contexto, a formação da pessoa responde a outras exigências: a afirmação da cultura do consumo, da ideologia do conflito, do pensamento relativista, etc. É necessário, portanto, humanizar a educação, ou seja, torná-la um processo em que cada pessoa possa desenvolver as próprias atitudes profundas, a própria vocação e assim contribuir para a vocação da própria comunidade. “Humanizar a educação”[17] significa colocar a pessoa no centro da educação, num quadro de relações que compõem uma comunidade viva, interdependente, vinculada a um destino comum. É desta maneira que é caracterizado o humanismo solidário.

9. Humanizar a educação significa, ainda, perceber que é preciso renovar o pacto educativo entre as gerações. De modo constante, a Igreja afirma que «a boa educação familiar é a coluna vertebral do humanismo»[18], e dela se propagam os significados de uma educação ao serviço de todo o corpo social, fundada na confiança mútua e na reciprocidade dos deveres[19]. Por tais razões, as instituições escolares e académicas que pretendam colocar a pessoa no centro da sua missão são chamadas a respeitar a família como a primeira sociedade natural, e a pôr-se ao seu lado, numa recta concepção de subsidiariedade.

10. Uma educação humanizada, portanto, não se limita a fornecer um serviço de formação, mas cuida dos seus resultados no quadro geral das capacidades pessoais, morais e sociais dos participantes no processo educativo; não pede simplesmente ao professor para ensinar e ao aluno para aprender, mas exorta cada um a viver, estudar e agir de acordo com as premissas do humanismo solidário; não prevê espaços de divisão e contraposição mas, pelo contrário, oferece lugares de encontro e debate para realizar projectos educativos válidos; trata-se de uma educação - ao mesmo tempo - sólida e aberta, que derruba os muros da exclusividade, promovendo a riqueza e a diversidade dos talentos individuais e expandindo o perímetro da própria sala de aula a cada âmbito da experiência social em que a educação pode gerar solidariedade, partilha, comunhão[20].

 

3. CULTURA DO DIÁLOGO

11. A vocação à solidariedade convida as pessoas do século XXI a confrontarem-se com os desafios da convivência multicultural. Nas sociedades globais convivem diariamente cidadãos de tradições, culturas, religiões e concepções de mundo diferentes, e daí surgem muitas vezes incompreensões e conflitos. Em tais circunstâncias, as religiões são frequentemente consideradas estruturas de princípios e valores monolíticos, intransigentes, incapazes de conduzir a humanidade à sociedade global. A Igreja Católica, pelo seu lado, «nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo», e é seu dever «anunciar a cruz de Cristo como sinal do amor universal de Deus e como fonte de toda a graça»[21]. Está igualmente convencida de que, na verdade, as dificuldades geralmente são o resultado de uma ausência de educação para o humanismo solidário, baseada na formação da cultura do diálogo.

12. A cultura do diálogo não significa simplesmente conversar para se conhecer, de modo a facilitar o encontro entre cidadãos de diferentes culturas. Mas o autêntico diálogo ocorre num quadro ético de requisitos e atitudes formativas, bem como de objectivos sociais. Os requisitos éticos para dialogar são a liberdade e a igualdade: os participantes do diálogo devem estar livres de seus interesses contingentes e estar dispostos a reconhecer a dignidade de todos os interlocutores. Esses comportamentos são baseados na coerência com o próprio universo de valores. Isso se traduz na intenção geral de conciliar as acções com as declarações, isto é, de associar os princípios éticos anunciados (por exemplo paz, igualdade, respeito, democracia...) com as escolhas sociais e civis realizadas. Trata-se de uma «gramática do diálogo», como indicado pelo Papa Francisco, capaz de «construir pontes e […] encontrar respostas para os desafios do nosso tempo»[22].

13. No pluralismo ético-religioso, em vez de serem um obstáculo, as religiões podem portanto estar ao serviço da convivência pública. A partir dos valores positivos de amor, esperança e salvação, num quadro de relações performativo e coerente, as religiões podem contribuir de modo significativo para a realização dos objectivos sociais de paz e justiça. Em tal perspectiva, a cultura do diálogo defende uma concepção prepositiva das relações civis. Em vez de reduzir a religiosidade à esfera individual, privada e confidencial, e obrigar os cidadãos a seguir no espaço público apenas as normas éticas e jurídicas do Estado, a cultura do diálogo inverte os termos da relação e exorta as crenças religiosas a professar em público os próprios valores éticos positivos.

14. A educação para o humanismo solidário tem a delicada responsabilidade de assegurar a formação de cidadãos dotados de uma adequada cultura do diálogo. Além disso, a dimensão intercultural é frequentemente vivida nas salas de aula de todos os tipos e níveis, bem como nas instituições universitárias, portanto é a partir delas que se deve difundir a cultura do diálogo. O quadro de valores, no qual vive, pensa e age o cidadão formado para o diálogo, é baseado em princípios relacionais (gratuidade, liberdade, igualdade, coerência, paz e bem comum) que entram de modo positivo e decisivo nos programas didácticos e formativos das instituições que prezam o humanismo solidário.

15. É característico da natureza da educação a capacidade de construir as bases para um diálogo pacífico e permitir o encontro entre as diversidades com o objectivo principal de edificar um mundo melhor. Trata-se, em primeiro lugar, de um processo educativo no qual a busca por uma convivência pacífica e enriquecedora enraíza-se no mais amplo conceito de ser humano - na sua caracterização psicológica, cultural e espiritual - para além de qualquer forma de egocentrismo e etnocentrismo, segundo uma concepção de desenvolvimento integral e transcendente da pessoa e da sociedade[23].

4. GLOBALIZAR A ESPERANÇA

16. «O desenvolvimento é o novo nome da paz», conclui a Populorum progressio [24]. Tal afirmação encontrou respaldo e confirmação nas décadas seguintes, assim como foram mais claros os rumos do desenvolvimento sustentável do ponto de vista económico, social e ambiental. Desenvolvimento e progresso, porém, ainda continuam sendo descrições de processos e não dizem muito sobre as metas principais da transformação histórico-social. Longe de exaltar o mito do progresso imanente à razão e à liberdade, a Igreja Católica associa o desenvolvimento ao anúncio da redenção cristã, que não é uma utopia indefinida e futurista, mas já é «substância da realidade», no sentido de que para ela «já estão presentes em nós as coisas que se esperam: a totalidade, a vida verdadeira»[25].

17. É necessário, então, por meio da esperança da salvação, ser já sinal vivo dessa esperança. No mundo globalizado como é possível propagar a mensagem de salvação de Jesus Cristo? «Não é a ciência que redime o homem. O homem é redimido pelo amor»[26]. A caridade cristã propõe gramáticas sociais universalizantes e inclusivas. Tal caridade informa as ciências que, preenchidas por ela, acompanharão o homem em busca do sentido e da verdade na criação. A educação para o humanismo solidário deve então começar a partir da certeza da mensagem de esperança contida na verdade de Jesus Cristo. Cabe a ela, portanto, irradiar tal esperança, que é a mensagem transmitida pela razão e pela vida activa, com os povos de todas as partes do mundo.

18. Globalizar a esperança é a missão específica da educação para o humanismo solidário. Uma missão que se realiza por meio da construção de relações educativas e pedagógicas que formem para o amor cristão, que criem grupos assentes na solidariedade, nas quais o bem comum esteja associado virtuosamente ao bem de cada um dos seus membros, que transformem o conteúdo das ciências em conformidade com a plena realização da pessoa e da sua pertença à humanidade. É justamente a educação cristã que pode desenvolver tal tarefa primária, pois a educação «é fazer nascer, é fazer crescer, coloca-se na dinâmica do dar a vida. E a vida que nasce é a fonte mais borbulhante de esperança»[27].

19. Globalizar a esperança significa também promover as esperanças da globalização. Por um lado, a globalização multiplicou as oportunidades de crescimento e abriu as relações sociais para novas e inéditas possibilidades. Por outro, além de alguns benefícios, esta causou desigualdades, explorações, além de levar, de modo perverso, alguns povos a sofrer uma exclusão dramática dos âmbitos do bem-estar. Uma globalização sem visão, sem esperança, sem uma mensagem que seja, ao mesmo tempo, anúncio e vida concreta, está destinada a produzir conflitos e a gerar sofrimentos e misérias.

 

5. POR UMA VERDADEIRA INCLUSÃO

20. Para cumprir a sua função, os projectos de formação da educação para o humanismo solidário visam alguns objectivos fundamentais. Primeiramente, o objectivo principal é permitir que cada cidadão se sinta activamente participante na construção do humanismo solidário. Os instrumentos utilizados devem promover o pluralismo, estabelecendo espaços de diálogo destinados à representação das questões éticas e normativas. A educação para o humanismo solidário deve assegurar, com uma atenção especial, que a aprendizagem das ciências corresponda à consciência de um universo ético no qual a pessoa age. Em particular, esta correcta concepção do universo ético deve orientar para a abertura de horizontes do bem comum progressivamente mais amplos, até englobar toda a família humana.

21. Tal processo inclusivo supera os limites da existência humana actual. O progresso científico e tecnológico tem mostrado, nestes últimos anos, como as escolhas feitas no presente possam influenciar os estilos de vida e, em alguns casos, da própria existência, dos cidadãos das futuras gerações. «A noção de bem comum engloba também as gerações futuras»[28]. Os cidadãos de hoje, de facto, devem ser solidários com os seus contemporâneos onde quer que estejam, mas também com os futuros cidadãos do planeta. Visto que «o problema é que não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise […] e há necessidade de construir lideranças que tracem caminhos, procurando dar resposta às necessidades das gerações actuais, todos incluídos, sem prejudicar as gerações futuras»[29], a tarefa específica da educação para o humanismo é contribuir para a construção da tal cultura baseada na ética intergeracional.

22. Isso significa que a educação amplia o âmbito clássico do alcance da sua acção. Se até agora a escola foi concebida como a instituição que forma os cidadãos do amanhã e se os agentes da formação responsáveis pela educação permanente se encarregam dos cidadãos do presente, mediante a educação para o humanismo solidário cuida-se da humanidade do futuro, a posteridade, para a qual é preciso ser solidário fazendo hoje escolhas responsáveis. É ainda mais verdadeiro no que diz respeito à formação académica, porque é por meio dela que são fornecidas as competências necessárias para fazer escolhas decisivas para o equilíbrio dos sistemas humano-sociais, naturais, ambientais, etc[30]. Os temas abordados nos cursos universitários, nesse sentido, deveriam ser desenvolvidos em torno a um critério decisivo para a avaliação da sua qualidade: a sustentabilidade segundo as necessidades das gerações futuras.

23. Para que haja uma verdadeira inclusão, é preciso dar outro passo entrando numa relação de solidariedade com as gerações que nos antecederam. Infelizmente a afirmação do paradigma tecnocrático reduziu, em alguns casos, o conhecimento histórico, científico e humanista - com a sua herança literária e artística -, enquanto uma visão correcta da história e do espírito, com o qual os nossos antepassados enfrentaram e superaram os seus desafios, pode ajudar o homem na complexa aventura da contemporaneidade. As sociedades humanas, as comunidades, os povos, as nações são o fruto das passagens da história, nas quais se revela uma identidade específica em contínua elaboração. Perceber o nexo fecundo entre a evolução histórica de uma comunidade e sua vocação para o bem comum e a realização do humanismo solidário acarreta a formação de uma consciência histórica, baseada na consciência da unidade indissolúvel que leva os antepassados, os contemporâneos e os vindouros a superarem os níveis de familiaridade para que todos se reconheçam igualmente filhos do único Pai, num relacionamento de solidariedade universal[31].

6. REDES DE COOPERAÇÃO

24. Assim como a Encíclica Populorum progressio recomenda a elaboração de «programas bem organizados»[32], hoje é evidente a necessidade de fazer convergir as iniciativas educativas e de investigação com os objectivos do humanismo solidário, conscientes que «não podem ficar dispersos e isolados e, menos ainda, opostos por razões de prestígio ou de poder»[33]. Tecer redes de cooperação, do ponto de vista educativo, escolar e académico, significa activar dinâmicas inclusivas, numa busca constante de novas possibilidades de incluir, no próprio circuito de ensino e aprendizagem, indivíduos diferentes, principalmente aqueles que têm dificuldades de usufruir de um plano formativo adequado às próprias necessidades. Lembrando que a educação ainda é um recurso limitado no mundo, considerando que há parcelas da humanidade que sofrem com a falta de instituições idóneas para o desenvolvimento, o primeiro compromisso da educação para o humanismo solidário consiste na socialização de si mesma, por meio da organização de redes de cooperação.

25. Uma educação para o humanismo solidário desenvolve redes de cooperação nos diferentes âmbitos do exercício da actividade educativa e, em particular, da formação académica. Primeiramente, exige dos agentes da educação a adopção de um comportamento propenso à colaboração. Particularmente, prefere a colegialidade do corpo docente na preparação dos programas de formação e de cooperação, bem como a colaboração entre os alunos, no que diz respeito às modalidades de aprendizagem e aos ambientes de formação. Mais ainda, enquanto células vivas do humanismo solidário, ligadas por um pacto educacional e por uma ética inter-geracional, a solidariedade entre quem ensina e quem aprende deve ser progressivamente inclusiva, plural e democrática.

26. A universidade deveria ser a principal oficina de formação para a cooperação na pesquisa científica, preferindo - no âmbito do humanismo solidário - a organização de pesquisas colectivas, em todas as áreas do conhecimento, cujos resultados possam ser corroborados pela objectividade científica da aplicação de lógicas, métodos e técnicas apropriadas, mas também a partir da experiência de solidariedade vivida pelos pesquisadores. Trata-se de favorecer a formação de grupos de pesquisa integrados entre o corpo docente, jovens pesquisadores e estudantes, além de solicitar a colaboração entre as instituições académicas situadas num contexto internacional. As redes de cooperação deverão ser instituídas entre sujeitos educativos e sujeitos de outro âmbito, por exemplo do mundo das profissões, das artes, do comércio, das empresas e de todos os corpos intermediários da sociedade nos quais o humanismo solidário precisa propagar-se.

27. Várias vozes pedem uma educação que supere as armadilhas dos processos de massificação cultural, os quais produzem os efeitos nocivos do nivelamento e, com isso, da manipulação consumista. O surgimento de redes de cooperação no âmbito da educação para o humanismo solidário pode contribuir para a superação de tais desafios, porque oferece descentralização e especialização. Numa perspectiva de subsidiariedade educativa, tanto a nível nacional como internacional, favorece-se a partilha de responsabilidades e experiências, indispensável para poder optimizar os recursos e evitar os riscos. De tal modo, cria-se uma rede não somente de pesquisa mas, sobretudo, de serviços nos quais prevalecem a ajuda recíproca e a partilha das novas descobertas, “permutando temporariamente os professores e promovendo tudo quanto favoreça uma maior ajuda mútua”[34].

7. PERSPECTIVAS

28. A educação e a formação, escolar e universitária, sempre estiveram no centro da proposta da Igreja Católica na vida pública. A Igreja defendeu a liberdade de educação quando, em culturas secularizadas e laicistas, os espaços designados para a formação aos valores religiosos pareciam reduzir-se. Por meio da educação, Ela continuou a fornecer princípios e valores à convivência pública quando as sociedades modernas, iludidas pelas metas científicas e tecnológicas, jurídicas e culturais, acreditavam que a cultura católica fosse insignificante. Hoje, assim como em cada época, a Igreja Católica tem a responsabilidade de contribuir, com o seu património de verdades e valores, para a construção do humanismo solidário, por um mundo pronto a actualizar a profecia contida na Encíclica Populorum progressio

29. Com o objectivo de dar uma alma ao mundo global, atravessado por mudanças constantes, a Congregação para a Educação Católica relança a prioridade da construção da “civilização do amor”[35] e exorta todos aqueles que, por profissão e por vocação, estão comprometidos nos processos educativos - em todos os níveis -, a viver com dedicação e sabedoria essa sua experiência, em nome dos princípios e valores abordados. O nosso Dicastério - depois do Congresso Mundial “Educar hoje e amanhã. Uma paixão que se renova” (Roma-Castel Gandolfo, 18-21 de novembro de 2015) – reiterou as reflexões e os desafios encontrados tanto pelos professores, alunos e pais quanto pelas Igrejas particulares, Famílias religiosas e Associações comprometidas no vasto universo da educação.

30. As presentes orientações são dirigidas a todos as pessoas que vivem diariamente a paixão e a missão educativa da Igreja nos vários continentes. Deseja-se, também, oferecer um instrumento útil para o diálogo construtivo com a sociedade civil e as Organizações Internacionais. O Papa Francisco criou a fundação “Gravissimum educationis”[36] com as “finalidades científicas e culturais para promover a educação católica no mundo”[37].

31. Em conclusão, os temas e os horizontes a explorar - a partir da cultura de diálogo, da globalização da esperança, da inclusão e das redes de cooperação - solicitam tanto a experiência formativa e de ensino, quanto a actividade de estudo e de pesquisa. Será necessário, portanto, favorecer a comunicação dessas experiências e dos resultados da pesquisa, de modo a permitir que cada sujeito comprometido na educação para o humanismo solidário possa compreender o significado da sua iniciativa, no processo global de construção de um mundo baseado nos valores da solidariedade cristã.

Roma, solenidade da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo festa da Páscoa, 16 de abril de 2017

Giuseppe Card. VERSALDI, Prefeito

 

Angelo VINCENZO ZANI, Secretário


[1] Paulo VI, Carta Encíclica Populorum progressio (26 de março de 1967), 3.

[2] Concílio Ecumênico Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no Mundo Actual (28 de outubro de 1965), 4-5.

[3] Pontifício Conselho «Justiça e Paz» , Compêndio da Doutrina Social da Igreja (2004), 167.

[4] Também por isso a Populorum progressio foi muitas vezes comparada, pela força do seu discurso social, à Rerum novarum do Papa Leão XIII: cf. João Paulo II, Carta Encíclica Sollicitudo rei socialis (30 de dezembro de 1987), 2-3; Bento XVI, Carta Encíclica Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 8.

[5] Populorum progressio, 42.

[6] Cf. Papa Francisco, Discurso aos Participantes no Convegno promovido pelo Dicastério pelo Serviço de Desenvolvimento Humano Integral no 50° aniversário da “Populorum progressio”, 4 de abril de 2017.

[7] Papa Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (24 de novembro de 2013), 24.

[8] “O amor na verdade — caritas in veritate — é um grande desafio para a Igreja num mundo em crescente e incisiva globalização. O risco do nosso tempo é que, à real interdependência dos homens e dos povos, não corresponda a interacção ética das consciências e das inteligências, da qual possa resultar um desenvolvimento verdadeiramente humano”. Bento XVI, Carta encíclica Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 9.

[9] Papa Francisco, Carta encíclica sobre o cuidado da casa comum Laudato Si’  (24 de Maio de 2015), 215.

[10] Cf. UNICEF, Relatório sobre a condição da infância no mundo 2016, Unicef, Florença 2016; UNICEF, Crianças da Recessão: o impacto da crise económica no bem-estar das crianças nos países ricos, Unicef-Office of Research Innocenti, Florença 2014.

[11] Cf. International Organization for Migration, World Migration Report 2015 – Migrants and Cities: New Partnerships to Manage Mobility, IOM, Geneva 2015.

[12] Bento XVI, Carta Encíclica Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 75.

[13] Ibid, 53.

[14] Populorum progressio, 13; Cf. Paulo VI, Discurso às Nações Unidas, 4 de outubro de 1965.

[15] Cf. Concílio Ecumênico Vaticano II, Declaração sobre a Educação Cristã Gravissimum educationis (28 de outubro de 1965), 1 B.

[16] Ibid., 1.

[17] Papa Francisco, Discurso aos participantes na Plenária da Congregação para a Educação Católica, 9 de fevereiro de 2017.

[18] Vide Papa Francisco, Catequese de 20 de maio de 2015 sobre a Família e a Educação.

[19] Ibid.

[20] Papa Francisco, Discurso aos participantes no Congresso Mundial sobre “Educar hoje e amanhã. Uma paixão que se renova” promovido pela Congregação para a Educação Católica, Roma, 21 de novembro de 2015.

[21] Concílio Ecumênico Vaticano II, Declaração sobre a Igreja e as Religiões Não-Cristãs Nostra Aetate (28 de outubro de 1965), 2, 4.

[22] Papa Francisco, Discurso aos participantes na Plenária da Congregação para a Educação Católica, 9 de fevereiro de 2017.

[23] Cf. Congregação para a Educação Católica, Educar para o diálogo intercultural na Escola Católica. Viver juntos para uma civilização de amor, Cidade do Vaticano 2013, n. 45.

[24] Populorum progressio, 87.

[25] Bento XVI, Carta Encíclica Spe salvi  (30 de novembro de 2007), 7.

[26] Ivi, 26.

[27] Papa Francisco, Discurso aos participantes na Plenária da Congregação para a Educação Católica, 9 de fevereiro de 2017.

[28] Papa Francisco, Carta Encíclica sobre o cuidado da casa comum Laudato Si’  (24 de Maio de 2015), 159.

[29] Ivi, 53.

[30] Cf. João Paulo II, Constituição Apostólica Ex corde Ecclesiae (15 de agosto de 1990), 34.

[31] Populorum progressio, 17.

[32] Ivi, 50.

[33] Ibid.

[34] Concílio Ecumênico Vaticano II, Declaração sobre a Educação Cristã Gravissimum educationis (28 de outubro de 1965), 12 B

[35] A expressão “civilização do amor” foi usada pelo Papa Paulo VI pela primeira vez em 17 de maio de 1970, Festa de Pentecostes (Ensinamentos, VIII/1970, 506), e retomada várias vezes durante o seu pontificado.

[36] Papa Francisco, Quirógrafo para a instituição da Fundação “Gravissimum Educationis”  (28 de outubro de 2015).

[37] Ibid.