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 TERCEIRA PARTE

A VIDA EM CRISTO

PRIMEIRA SECÇÃO

A VOCAÇÃO DO HOMEM: A VIDA NO ESPÍRITO

CAPÍTULO SEGUNDO

A COMUNIDADE HUMANA

1877. A vocação da humanidade é manifestar a imagem de Deus e ser transformada à imagem do Filho único do Pai. Esta vocação reveste-se de uma forma pessoal, pois cada um é chamado a entrar na bem-aventurança divina. Mas diz também respeito ao conjunto da comunidade humana.

ARTIGO 1

A PESSOA E A SOCIEDADE

I. O carácter comunitário da vocação humana

1878. Todos os homens são chamados ao mesmo fim, que é o próprio Deus. Existe uma certa semelhança entre a unidade das pessoas divinas e a fraternidade que os homens devem instaurar entre si, na verdade e no amor (1). O amor ao próximo é inseparável do amor a Deus.

1879. A pessoa humana tem necessidade da vida social. Esta não constitui para ela algo de acessório, mas uma exigência da sua natureza. Graças ao contacto com os demais, ao serviço mútuo e ao diálogo com os seus irmãos, o homem desenvolve as suas capacidades, e assim responde à sua vocação (2).

1880. Sociedade é um conjunto de pessoas ligadas de modo orgânico por um princípio de unidade que ultrapassa cada uma delas. Assembleia ao mesmo tempo visível e espiritual, uma sociedade perdura no tempo: assume o passado e prepara o futuro. Através dela, cada homem é constituído «herdeiro», recebe «talentos» que enriquecem a sua identidade e cujos frutos deve desenvolver (3). Com toda a razão, cada um é devedor de dedicação às comunidades de que faz parte e de respeito às autoridades encarregadas do bem comum.

1881. Cada comunidade define-se pelo fim a que tende e, por conseguinte, obedece a regras específicas. Mas « pessoa humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais» (4).

1882. Certas sociedades, como a família e a comunidade civil, correspondem de modo mais imediato à natureza do homem. São-lhe necessárias. Para favorecer a participação do maior número possível de pessoas na vida social, deve fomentar-se a criação de associações e instituições de livre iniciativa, «com fins económicos, culturais, sociais, desportivos, recreativos, profissionais, políticos, tanto no interior das comunidades políticas como a nível mundial» (5). Esta «socialização» exprime também a tendência natural que leva os seres humanos a associarem-se, com vista a atingirem objectivos que ultrapassam as capacidades individuais. Desenvolve as qualidades da pessoa, particularmente o sentido de iniciativa e de responsabilidade, e contribui para garantir os seus direitos (6).

1883. Mas a socialização também oferece perigos. Uma intervenção exagerada do Estado pode constituir uma ameaça à liberdade e às iniciativas pessoais. A doutrina da Igreja elaborou o princípio dito da subsidiariedade. Segundo ele, «uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna duma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la, em caso de necessidade, e ajudá-la a coordenar a sua acção com a dos demais componentes sociais, com vista ao bem comum» (7).

1884. Deus não quis reservar só para Si o exercício de todos os poderes. Confia a cada criatura as funções que ela é capaz de exercer, segundo as capacidades da sua própria natureza. Este modo de governo deve ser imitado na vida social. O procedimento de Deus no governo do mundo, que testemunha tão grande respeito para com a liberdade humana, deveria inspirar a sabedoria daqueles que governam as comunidades humanas. Eles devem actuar como ministros da providência divina.

1885. O princípio da subsidiariedade opõe-se a todas as formas de colectivismo e marca os limites da intervenção do Estado. Visa harmonizar as relações entre os indivíduos e as sociedades e tende a instaurar uma verdadeira ordem internacional.

II. Conversão e sociedade

1886. A sociedade é indispensável à realização da vocação humana. Para atingir esse fim, tem de ser respeitada a justa hierarquia dos valores, que «subordina as dimensões físicas e instintivas às dimensões interiores e espirituais» (8):

«A convivência humana [...] há-de considerar-se, antes de mais, como um facto de ordem principalmente espiritual: como comunicação de conhecimentos, à luz da verdade; exercício de direitos e cumprimento de deveres; incentivo e apelo aos bens do espírito; gozo comum do justo prazer da beleza em todas as suas expressões; permanente disposição para partilhar com os outros o melhor de si mesmo; aspiração a uma mútua e cada vez mais rica assimilação de valores espirituais. Todos estes valores vivificam e, ao mesmo tempo, orientam tudo o que diz respeito às doutrinas, às realidades económicas, à convivência cívica, aos movimentos e regimes políticos, à ordem jurídica e aos demais elementos exteriores através dos quais se articula e se exprime a convivência humana no seu incessante devir» (9).

1887. A inversão dos meios e dos fins (10), que chega a dar valor de fim último ao que não passa de meio para a ele chegar ou a considerar as pessoas como puros meios com vista a um fim, gera estruturas injustas que «tornam árduo e praticamente impossível um procedimento cristão, conforme com os mandamentos do divino legislador» (11).

1888. Deve-se, pois, apelar para as capacidades espirituais e morais da pessoa e para a exigência permanente da sua conversão interior, para se conseguirem mudanças sociais que estejam realmente ao seu serviço. A prioridade reconhecida à conversão do coração, não elimina de modo algum, antes impõe, a obrigação de introduzir nas instituições e nas condições de vida, quando introduzem ao pecado, as correcções convenientes para que elas se conformem com as normas da justiça e favoreçam o bem, em vez de se lhe oporem (12).

1889. Sem a ajuda da graça, os homens não seriam capazes de «descobrir o caminho, muitas vezes estreito, entre a cobardia que cede ao mal e a violência que, julgando combatê-lo, o agrava» (13). É o caminho da caridade, ou seja, do amor de Deus e do próximo. A caridade constitui o maior mandamento social. Ela respeita o outro e os seus direitos, exige a prática da justiça, de que só ela nos torna capazes e inspira-nos uma vida de entrega: «Quem procurar preservar a vida, há-de perdê-la; quem a perder, há-de salvá-la» (Lc 17, 33).

Resumindo:

1890. Existe uma certa semelhança entre a unidade das pessoas divinas e a fraternidade que os homens devem instaurar entre si.

1891. Para se desenvolver em conformidade com a sua natureza, a pessoa humana tem necessidade da vida social. Certas sociedades, como a família e a comunidade civil, correspondem, de modo mais imediato, à natureza do homem.

1892. «A pessoa humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais» (14).

1893. Deve promover-se uma larga participação nas associações e instituições de livre iniciativa.

1894. Segundo o princípio da subsidiariedade, nem o Estado nem qualquer sociedade mais abrangente devem substituir-se à iniciativa e à responsabilidade das pessoas e dos corpos intermédios.

1895. A sociedade deve favorecer a prática das virtudes, e não impedi-la. Deve inspirar-se numa justa hierarquia de valores.

1896. Onde quer que o pecado perverta o clima social, deve fazer-se apelo à conversão dos corações e à graça de Deus. A caridade incentiva reformas justas. Não existe solução para a questão social fora do Evangelho (15).

ARTIGO 2

A PARTICIPAÇÃO NA VIDA SOCIAL

I. A autoridade

1897. «A sociedade humana não estará bem constituída nem será fecunda, se a ela não presidir uma autoridade legítima que salvaguarde as instituições e dedique o necessário trabalho e esforço ao bem comum» (16).

Chama-se «autoridade» àquela qualidade em virtude da qual pessoas ou instituições dão leis e ordens a homens e esperam obediência da parte deles.

1898. Toda a comunidade humana tem necessidade de uma autoridade que a governe (17). Esta tem o seu fundamento na natureza humana. Ela é necessária para a unidade da comunidade civil. O seu papel consiste em assegurar, quanto possível, o bem comum da sociedade.

1899. A autoridade exigida pela ordem moral emana de Deus: «Submeta-se cada qual às autoridades constituídas. Pois não há autoridade que não tenha sido constituída por Deus e as que existem foram estabelecidas por Ele. Quem resiste, pois, à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus, e os que lhe resistem atraem sobre si a condenação» (Rm 13, 1‑2) (18).

1900. O dever de obediência impõe a todos a obrigação de tributar à autoridade as honras que lhe são devidas e de rodear de respeito e, segundo o seu mérito, de gratidão e benevolência, as pessoas que a exercem.

Saída da pena do papa São Clemente de Roma, encontramos a mais antiga oração da Igreja pela autoridade política (19):

«Dai-lhes, Senhor, a saúde, a paz, a concórdia, a estabilidade, para que exerçam sem obstáculos a soberania que lhes confiastes. Sois Vós, ó mestre, celeste rei dos séculos, quem dá aos filhos dos homens glória, honra e poder sobre as coisas da terra. Dirigi, Senhor, o seu conselho segundo o que é bem, segundo o que é agradável aos vossos olhos, para que, exercendo com piedade, na paz e na mansidão, o poder que lhes destes, Vos encontrem propício» (20).

1901. Se a autoridade remete para uma ordem fixada por Deus, já «a determinação dos regimes políticos, tal como a designação dos seus dirigentes, devem ser deixados à livre vontade dos cidadãos» (12).

A diversidade dos regimes políticos é moralmente admissível, desde que concorram para o bem legítimo da comunidade que os adopta. Os regimes cuja natureza for contrária à lei natural, à ordem pública e aos direitos fundamentais das pessoas, não podem promover o bem comum das nações onde se impuseram.

1902. A autoridade não recebe de si mesma a legitimidade moral. Por isso, não deve proceder de maneira despótica, mas agir em prol do bem comum, como uma «força moral fundada na liberdade e no sentido de responsabilidade» (22):

«A legislação humana só se reveste do carácter de lei, na medida em que se conforma com a justa razão; daí ser evidente que ela recebe todo o seu vigor da Lei eterna. Na medida em que se afastar da razão, deve ser declarada injusta, pois não realiza a noção de lei: será, antes, uma forma de violência» (23).

1903. A autoridade só é exercida legitimamente na medida em que procurar o bem comum do respectivo grupo e em que, para o atingir, empregar meios moralmente lícitos. No caso de os dirigentes promulgarem leis injustas ou tomarem medidas contrárias à ordem moral, tais disposições não podem obrigar as consciências. «Neste caso, a própria autoridade deixa de existir e degenera em abuso do poder» (24).

1904. «É preferível que todo o poder seja equilibrado por outros poderes e outras competências que o mantenham no seu justo limite. Este é o princípio do "Estado de direito", no qual é soberana a Lei, e não a vontade arbitrária dos homens» (25).

II. O bem comum

1905. Em conformidade com a natureza social do homem, o bem de cada um está necessariamente relacionado com o bem comum. E este não pode definir-se senão em referência à pessoa humana:

«Não vivais isolados, fechados em vós mesmos, como se já estivésseis justificados; mas reuni-vos para procurar em conjunto o que é de interesse comum» (26).

1906. Por bem comum deve entender-se «o conjunto das condições sociais que permitem, tanto aos grupos como a cada um dos seus membros, atingir a sua perfeição, do modo mais completo e adequado» (27). O bem comum interessa à vida de todos. Exige prudência da parte de cada um, sobretudo da parte de quem exerce a autoridade. E inclui três elementos essenciais:

1907. Supõe, em primeiro lugar, o respeito da pessoa como tal. Em nome do bem comum, os poderes públicos são obrigados a respeitar os direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana. A sociedade humana deve empenhar-se em permitir, a cada um dos seus membros, realizar a própria vocação. De modo particular, o bem comum reside nas condições do exercício das liberdades naturais, indispensáveis à realização da vocação humana: «Por exemplo, o direito de agir segundo a recta norma da sua consciência, o direito à salvaguarda da vida privada e à justa liberdade, mesmo em matéria religiosa» (28).

1908. Em segundo lugar, o bem comum exige o bem-estar social e o desenvolvimento da própria sociedade. O desenvolvimento é o resumo de todos os deveres sociais. Sem dúvida, à autoridade compete arbitrar, em nome do bem comum, entre os diversos interesses particulares; mas deve tornar acessível a cada qual aquilo de que precisa para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, saúde, trabalho, educação e cultura, informação conveniente, direito de constituir família (29), etc.

1909. Finalmente, o bem comum implica a paz, quer dizer, a permanência e segurança duma ordem justa. Supõe, portanto, que a autoridade assegure, por meios honestos, a segurança da sociedade e dos seus membros. O bem comum está na base do direito à legítima defesa, pessoal e colectiva.

1910. Se cada comunidade humana possui um bem comum que lhe permite reconhecer-se como tal, é na comunidade política que se encontra a sua realização mais completa. Compete ao Estado defender e promover o bem comum da sociedade civil, dos cidadãos e dos corpos intermédios.

1911. As dependências humanas intensificam-se. Estendem-se, pouco a pouco, a toda a terra. A unidade da família humana, reunindo seres de igual dignidade natural, implica um bem comum universal. E este requer uma organização da comunidade das nações, capaz de «prover às diversas necessidades dos homens, tanto no domínio da vida social (alimentação, saúde, educação...), como para fazer face a múltiplas circunstâncias particulares que podem surgir aqui e ali (por exemplo: [...] acudir às misérias dos refugiados, dar assistência aos migrantes e suas famílias...)» (30).

1912. O bem comum está sempre orientado para o progresso das pessoas: «A ordem das coisas deve estar subordinada à ordem das pessoas, e não o inverso» (31). Esta ordem tem por base a verdade, constrói-se na justiça e é vivificada pelo amor.

III. Responsabilidade e participação

1913. Participação é o empenhamento voluntário e generoso da pessoa nas permutas sociais. É necessário que todos tomem parte, cada qual segundo o lugar que ocupa e o papel que desempenha, na promoção do bem comum. Este é um dever inerente à dignidade da pessoa humana.

1914. A participação realiza-se, primeiro, ao encarregar-se alguém dos sectores de que assume a responsabilidade pessoal: pelo cuidado que põe na educação da família, pela consciência com que realiza o seu trabalho, o homem participa no bem dos outros e da sociedade (32).

1915. Os cidadãos devem, tanto quanto possível, tomar parte activa na vida pública. As modalidades desta participação podem variar de país para país ou de uma cultura para outra. «É de louvar o modo de agir das nações em que, em autêntica liberdade, o maior número possível de cidadãos participa nos assuntos públicos» (33).

1916. A participação de todos na promoção do bem comum implica, como qualquer dever ético, uma conversão incessantemente renovada dos parceiros sociais. A fraude e outros subterfúgios, pelos quais alguns se esquivam às obrigações da lei e às prescrições do dever social, devem ser firmemente condenados como incompatíveis com as exigências da justiça. Importa promover o progresso das instituições que melhorem as condições da vida humana (34).

1917. Incumbe àqueles que exercem cargos de autoridade garantir os valores que atraem a confiança dos membros do grupo e os incitam a colocar-se ao serviço dos seus semelhantes. A participação começa pela educação e pela cultura. «Pode-se legitimamente pensar que o futuro da humanidade está nas mãos daqueles que souberem dar às gerações de amanhã razões de viver e de esperar» (35).

Resumindo:

1918. «Não existe autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram por Deus estabelecidas» (Rm 13, 1).

1919. Toda a comunidade humana tem necessidade duma autoridade, para se manter e desenvolver:

1920. «A comunidade política e a autoridade pública têm o seu fundamento na natureza humana, e pertencem, por isso, à ordem estabelecida por Deus» (36).

1921. A autoridade exerce-se de modo legítimo, se se dedicar a conseguir o bem comum da sociedade. Para o atingir, deve empregar meios moralmente aceitáveis.

1922. A diversidade dos regimes políticos é legítima, desde que estas concorram para o bem da comunidade.

1923. A autoridade política deve exercer-se dentro dos limites da ordem moral, e garantir as condições necessárias para o exercício da liberdade.

1924. O bem comum abrange «o conjunto das condições sociais que permitem aos grupos e às pessoas atingir a sua perfeição, do modo mais pleno e fácil» (37).

1925. O bem comum inclui três elementos essenciais: o respeito e a promoção dos direitos fundamentais da pessoa; a prosperidade ou desenvolvimento dos bens espirituais e temporais da sociedade; a paz e a segurança do grupo e dos seus membros.

1926. A dignidade da pessoa humana implica a busca do bem comum. Cada qual deve preocupar-se em suscitar e sustentar instituições que melhorem as condições da vida humana.

1927. Compete ao Estado defender e promover o bem comum da sociedade civil. O bem comum de toda a família humana exige uma organização da sociedade internacional.

ARTIGO 3

A JUSTIÇA SOCIAL

1928. A sociedade garante a justiça social, quando realiza as condições que permitem às associações e aos indivíduos obterem o que lhes é devido, segundo a sua natureza e vocação. A justiça social está ligada ao bem comum e ao exercício da autoridade.

I. O respeito pela pessoa humana

1929. A justiça social só pode alcançar-se no respeito da dignidade transcendente do homem. A pessoa constitui o fim último da sociedade, que está ordenada para ela:

A defesa e promoção da dignidade da pessoa humana «foram-nos confiadas pelo Criador, tarefa a que estão rigorosa e responsavelmente obrigados os homens e as mulheres em todas as conjunturas da história (38).

1930. O respeito pela pessoa humana implica o dos direitos que dimanam da sua dignidade de criatura. Esses direitos são anteriores à sociedade e impõem-se-lhe. Estão na base da legitimidade moral de qualquer autoridade: desprezando-os ou recusando reconhecê-los na sua legislação positiva, uma sociedade atenta contra a sua própria legitimidade moral (39). Faltando esse respeito, uma sociedade não tem outra solução, senão o recurso à força e à violência, para obter a obediência dos seus súbitos. É dever da Igreja trazer à memória dos homens de boa vontade aqueles direitos, e distingui-los das reivindicações abusivas ou falsas.

1931. O respeito pela pessoa humana passa pelo respeito pelo princípio: «Que cada um considere o seu próximo, sem qualquer excepção, como «outro ele mesmo», e zele, antes de mais, pela sua existência e pelos meios que lhe são necessários para viver dignamente» (40). Nenhuma legislação será capaz, por si mesma, de fazer desaparecer os temores, os preconceitos, as atitudes de orgulho e egoísmo que são obstáculo ao estabelecimento de sociedades verdadeiramente fraternas. Tais atitudes só desaparecem com a caridade, que vê em cada homem um «próximo», um irmão.

1932. O dever de nos fazermos o «próximo» do outro, e de o servirmos activamente, é tanto mais premente quanto esse outro for mais indefeso, seja em que domínio for. «Quantas vezes o fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes» (Mt 25, 40).

1933. Este mesmo dever é extensivo a todos os que pensam ou se comportam de modo diferente de nós. A doutrina de Cristo chega a exigir o perdão das ofensas. Ele estende o mandamento do amor, que é o da nova Lei, a todos os inimigos (41). A libertação, no espírito do Evangelho, é incompatível com o ódio ao inimigo, enquanto pessoa; embora não o seja com o ódio ao mal, que ele pode praticar enquanto inimigo.

II. Igualdade e diferença entre os homens

1934. Criados à imagem do Deus único, dotados duma idêntica alma racional, todos os homens têm a mesma natureza e a mesma origem. Resgatados pelo sacrifício de Cristo, todos são chamados a participar da mesma bem-aventurança divina. Todos gozam, portanto, de igual dignidade.

1935. A igualdade entre os homens assenta essencialmente na sua dignidade pessoal e nos direitos que dela dimanam:

«Toda a espécie de discriminação relativamente aos direitos fundamentais da pessoa, quer por razão do sexo, quer da raça, cor, condição social, língua ou religião, deve ser ultrapassada e eliminada como contrária ao desígnio de Deus» (42).

1936. Ao vir ao mundo, o homem não dispõe de tudo o que é necessário para o desenvolvimento da sua vida corporal e espiritual. Precisa dos outros. Há diferenças relacionadas com a idade, as capacidades físicas, as aptidões intelectuais e morais, os intercâmbios de que cada um pôde beneficiar, a distribuição das riquezas (43). Os «talentos» não são distribuídos por igual (44).

1937. Estas diferenças fazem parte do plano de Deus que quer que cada um receba de outrem aquilo de que precisa e que os que dispõem de «talentos» particulares comuniquem os seus benefícios aos que deles precisam. As diferenças estimulam e muitas vezes obrigam as pessoas à magnanimidade, à benevolência e à partilha: e incitam as culturas a enriquecerem-se umas às outras:

«Eu distribuo as virtudes tão diferentemente, que não dou tudo a todos, mas a uns uma e a outros outra [...] A um darei principalmente a caridade, a outro a justiça, a este a humildade, àquele uma fé viva. [...] E assim dei muitos dons e graças de virtudes, espirituais e temporais, com tal diversidade, que não comuniquei tudo a uma só pessoa, a fim de que vós fosseis forçados a usar de caridade uns para com os outros; [...] Eu quis que um tivesse necessidade do outro e todos fossem meus ministros na distribuição das graças e dons de Mim recebidos» (45).

1938. Mas também existem desigualdades iníquas que ferem milhões de homens e de mulheres. Essas estão em contradição frontal com o Evangelho:

«A igual dignidade pessoal postula que se chegue a condições de vida mais humanas e justas. Com efeito, as excessivas desigualdades económicas e sociais entre os membros ou povos da única família humana provocam escândalo e são obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e, finalmente, à paz social e internacional» (46).

III. A solidariedade humana

1939. O princípio da solidariedade, também enunciado sob o nome de «amizade» ou de «caridade social», é uma exigência directa da fraternidade humana e cristã (47):

Um erro, «hoje largamente espalhado, é o que esquece esta lei da solidariedade humana e da caridade, ditada e imposta tanto pela comunidade de origem e pela igualdade da natureza racional entre todos os homens, seja qual for o povo a que pertençam, como pelo sacrifício da redenção oferecido por Jesus Cristo no altar da cruz ao Pai celeste, em favor da humanidade pecadora» (48).

1940. A solidariedade manifesta-se, em primeiro lugar, na repartição dos bens e na remuneração do trabalho. Implica também o esforço por uma ordem social mais justa, em que as tensões possam ser resolvidas melhor e os conflitos encontrem mais facilmente uma saída negociada.

1941. Os problemas sócio-económicos só podem ser resolvidos com a ajuda de todas as formas de solidariedade: solidariedade dos pobres entre si, dos ricos com os pobres, dos trabalhadores entre si, dos empresários e empregados na empresa; solidariedade entre as nações e entre os povos. A solidariedade internacional é uma exigência de ordem moral. Dela depende, em parte, a paz do mundo.

1942. A virtude da solidariedade vai além dos bens materiais. Ao difundir os bens espirituais da fé, a Igreja favoreceu, por acréscimo, o desenvolvimento dos bens temporais, a que, muitas vezes, abriu novos caminhos. Assim se verificou, ao longo dos séculos, a Palavra do Senhor: «Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo» (Mt 6, 33):

«Desde há dois mil anos que vive e persevera na alma da Igreja este sentimento, que levou e ainda leva as almas até ao heroísmo caridoso dos monges agricultores, dos libertadores de escravos, dos que cuidam dos doentes, dos mensageiros da fé, da civilização, da ciência a todas as gerações e a todos os povos, em vista a criar condições sociais capazes de a todos tornar possível uma vida digna do homem e do cristão» (49).

Resumindo:

1943. A sociedade assegura a justiça social, realizando as condições que permitem às associações e aos indivíduos obterem o que lhes é devido.

1944. O respeito pela pessoa humana considera o outro como «outro eu». Supõe o respeito pelos direitos fundamentais, decorrentes da dignidade intrínseca da pessoa.

1945. A igualdade entre os homens assenta na sua dignidade pessoal e nos direitos que dela dimanam.

1946. As diferenças entre as pessoas fazem parte do desígnio de Deus que quer que precisemos uns dos outros. Devem estimular a caridade.

1947. A igual dignidade das pessoas humanas exige esforços no sentido de reduzir desigualdades sociais e económicas excessivas. Conduza o desaparecimento das desigualdades iníquas.

1948. A solidariedade é uma virtude eminentemente cristã. Pratica a partilha dos bens espirituais, ainda mais que a dos materiais.

 

 


Notas

1. Cf. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 24: AAS 58 (1966) 1045.

2. Cf. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 25: AAS 58 (1966) 1045.

3. Cf. Lc 19, 13. 15.

4. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 25: AAS 58 (1966) 1045.

5.  João XXIII, Enc. Mater et magistra, 60: AAS 53 (1961) 416.

6. Cf. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 24: AAS 58 (1966) 1045-1046; João Paulo II, Enc. Centesimus annus, 16: AAS 83 (1991) 813.

7. João Paulo II, Enc. Centesimus annus, 48: AAS 83 (1991) 854: cf. Pio XI, Enc. Quadragesimo anno: AAS 23 (1931) 184-186.

8. João Paulo II, Enc. Centesimus annus, 36: AAS 83 (1991) 838.

9. João XXIII, Enc. Pacem in terris, 36: AAS 55 (1963) 266.

10. Cf. João Paulo II, Enc. Centesimus annus, 41: AAS 83 (1991) 844.

11. Pio XII, Mensagem radiofónica (1 de Junho de 1941): AAS 33 (1941) 197.

12. Cf. II Concílio do Vaticano, Cons. dogm. Lumen Gentium, 36: AAS 57 (1965) 42.

13. João Paulo II, Enc. Centesimus annus, 25 AAS 83 (1991) 823.

14. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 25 AAS 58 (1966) 1045.

15. Cf. João Paulo II, Enc. Centesimus annus, 5: AAS 83 (1991) 800.

16. João XXIII, Enc. Pacem in terris, 46: AAS 55 (1963) 269.

17. Cf. Leão XIII, Enc. Diuturnum illud: Leonis XIII Acta 2, 271; Id., Enc. Immortale Dei: Leonis XIII Acta, 5, 120.

18. Cf. 1 Pe 2, 13-17.

19 Cf. já 1 Tm 2, 1-2.

20. São Clemente de Roma, Epistula ad Corinthios, 61, 1-2: SC 167, 198-200 (Funk 1, 178-180).

21. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 74: AAS 58 (1966) 1096.

22. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 74: AAS 58 (1966) 1096.

23. São Tomás de Aquino, Summa theologiae, 1-2, q. 93, a. 3. ad 2: Ed. Leon. 7, 164.

24. João XXIII, Enc. Pacem in terris, 51: AAS 55 (1963) 271.

25. João Paulo II, Enc. Centesimus annus, 44: AAS 83 (1991) 848.

26. Pseudo Barnabé, Epistula, 4, 10: SC 172, 100-102 (Funk 1, 48).

27. Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 26: AAS 58 (1966)1046: cf. Ibid., 74: AAS 58 (1966) 1096.

28. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 26: AAS 58 (1966) 1046.

29.  Cf. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 26: AAS 58 (1966) 1046.

30. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 84: AAS 58 (1966) 1107.

31. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 26: AAS 58 (1966) 1047.

32. Cf. João Paulo II, Enc. Centesimus annus, 31: AAS 83 (1991) 847.

33. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 3162: AAS 58 (1966) 1050.

34. Cf. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 30: AAS 58 (1966) 1049.

35. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 31: AAS 58 (1966) 1050.

36. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 74: AAS 58 (1966) 1096.

37. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 26: AAS 58 (1966) 1046.

38. João Paulo II, Enc. Sollicitudo rei socialis, 47: AAS 80 (1988) 581.

39. Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris, 61: AAS 55 (1963) 274.

40. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 27: AAS 58 (1966) 274.

41. Cf. Mt 5, 43-44.

42. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 29: AAS 58 (1966) 1048-1049.

43. Cf. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 29: AAS 58 (1966) 1048.

44. Cf. Mt 25, 14-30: Lc 19, 11-27.

45. Santa Catarina de Sena, Il dialogo della Divina provvidenza, 7: ed. G. Cavallini (Roma 1995) p. 23-24.

46. II Concílio do Vaticano, Const. past. Gaudium et spes, 29: AAS 58 (1966) 1049.

47. Cf. João Paulo II, Enc. Sollicitudo rei socialis, 38-40: AAS 80 (1988) 564-569; Id.. Enc. Centesimus annus, 10: AAS 83 (1991) 805-806.

48. Pio XII, Enc. Summi Pontificatus: AAS 31 (1939) 426.

49. Pio XII, Mensagem radiofónica (1 de Junho de 1941): AAS 33 (1941) 204.

 

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